O que de fato reflete o senso de humor, a irreverência e a autogozação do carioca são as marchinhas, que funcionam como crônica de costumes
O mais esplendoroso e o mais impressionante espetáculo do carnaval carioca é, como se sabe, o desfile das escolas de samba. Não há dúvida. Mas o que de fato reflete o senso de humor, a irreverência e a autogozação do carioca são as marchinhas, que funcionam como crônica de costumes ou como registro satírico da atualidade, principalmente a política. O espírito de cada época do país pode ser revelado por essas composições sem pretensão artística, descompromissadas, cheias de graça e ingênua malícia. E de sucesso permanente. Não por acaso, “Sassaricando — e o Rio inventou a marchinha” já completou uma década de apresentações e foi assistido por milhares de pessoas de várias idades, entre viúvas, brotinhos e madames. Os autores tiveram que selecionar, entre 400, as cerca de cem que ilustram o musical.
As marchinhas podem ser agrupadas por categorias, com destaque para as politicamente incorretas, que revelam os preconceitos de cada momento, às vezes disfarçados, como em “O teu cabelo não nega” (“Mas como a cor não pega, mulata/ Mulata, eu quero o teu amor”); às vezes escancarados, como em “Nega do cabelo duro”; “Maria Sapatão” (“De dia é Maria, de noite é João”); “Cabeleira do Zezé” (“Será que ele é?”). Quando a publicidade de bebidas precisa trazer a advertência “Beba com moderação”, é engraçado ver a quantidade de músicas exaltando o porre, como em “Saca-rolha” (“Bebo até me afogar”) ou “Cachaça” (“Pode me faltar tudo na vida, arroz, feijão e pão/ ... Só não quero que me falte a danada da cachaça”).
A política, que foi popularizada por “Retrato do Velho”, sobre a volta de Getúlio Vargas ao poder (“Bota o retrato do velho outra vez/ Bota no mesmo lugar”), é o tema e algumas das marchinhas do carnaval deste ano. A presidente Dilma aparece com outro nome, mas é inconfundível: “Tia Wilma e a bicicleta” (“Pedalando ela é celebridade, na ciclovia, de artista tira onda”). A citação em latim na carta que Michel Temer escreveu à presidente motivou os versos de uma suposta resposta: “Meu latim com você não gasto mais/ Nosso amor virou rancor, não me escreva mais”. Até Chico Buarque, vítima de ataques fascistoides, ganhou uma defesa bem humorada: “Não enche o saco do Chico” (“Não phode playboy patriota de araque/ ... Vai trabalhar, vagabundo”).
O personagem mais inesperado do elenco de 2016, porém, e mais engraçado, é Newton Ishii, o agente que aparecia em quase todas as fotos acompanhando os presos da operação Lava-Jato, e de repente ficou conhecido como “o Japonês da Federal”, que é o título da marchinha que viralizou nas redes sociais com o refrão: “Ai, meu Deus, me dei mal/ Bateu à minha porta o japonês da federal”.
Pelo menos no carnaval, a política tem graça e faz sucesso.