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Paulo Gustavo está abrindo uma frente inédita para o cinema brasileiro

 

Quando fui ver “Minha mãe é uma peça 3”, não fui com muito entusiasmo. Apesar de cumprir um papel importante na aproximação do público com o filme brasileiro, os dois primeiros filmes da série haviam me dividido entre o que chamávamos de neo-chanchada, um gênero vazio que tentava fazer explodir o nada, e a descoberta de um comediante original, cheio de energia, com uma capacidade de improvisação que detonava o cotidiano e nos fazia rir com isso. Alguma coisa entre Zé Trindade e Chico Anysio.

O terceiro filme da série me pegou desde sua abertura. Embora ali não houvesse piada para fazer rir desbragadamente, havia alguma coisa doce e carinhosa naquele passeio de dona Hermínia pela feira, onde havia se acostumado a comprar mamões e bananas para equilibrar seu movimento intestinal e a vontade de ir ao banheiro. Eu estava descobrindo que Paulo Gustavo não era um cômico vulgar, não estava interessado em fazer rir de trapalhadas físicas e convencionais. Ele não pretendia nos conquistar pela dificuldade de usar seu corpo ou sua inteligência, como um Três Patetas desses, mas em nos revelar dificuldades comuns a todos nós, às nossas cultura e organização social. E rir delas sem subestimar a importância de vencê-las.

“Minha mãe é uma peça 3” me emocionou num crescendo de tensão cômica e dramática. De repente, eu estava diante de uma mãe dedicada que tentava organizar a vida de seus filhos, como qualquer mãe que conhecemos. Dona Hermínia tem que seguir, ao mesmo tempo, suas intuições sobre cada um deles, que julga conhecer de modo absoluto, e os desejos pessoais dos dois jovens. Sentimos suas frustrações e fracassos com os filhos como se fossem frustrações e fracassos nossos, mal percebemos que estamos torcendo por ela. O texto, os personagens e as improvisações em cena de Paulo Gustavo não nos dão tempo ou espaço para autopiedade.

É difícil resumir o papel de um criador como Paulo Gustavo nisso tudo. Não sei se ele tinha consciência do destaque social e cultural do que fazia. Nem precisava ter. O maior comediante da história do cinema, Charles Chaplin, aquele que inventou a comédia de costumes no silêncio de seus filmes, que inventou o riso como arma de conhecimento do outro e consciência de todos, devia saber do que o cinema era capaz e, no entanto, fez sua obra como quem vai ali e já volta. E esse “ali” era o próprio mundo em torno dele e a vida que ele cantava, mesmo que com acidez, através de seus personagens, fossem eles heróis ou vilões.

A série “Minha mãe é uma peça”, assim como tudo o que Paulo Gustavo fez no teatro, no cinema ou na televisão, tem como base a ideia de mudança necessária, justificada pelo esforço, a dor que também faz rir. Mas sempre com muito afeto. Como em “Stella Dallas”, de 1937, um clássico de King Vidor, a síntese da emoção familiar, em que uma mãe pobre, que alimentou, educou e cuidou de sua filha, a vê casar-se, da rua e sob a chuva, através da janela de vidro dos ricos pais do noivo. Paulo Gustavo era um cineasta brasileiro caminhando velozmente no rumo dessa tradição de grandes cineastas, abrindo uma nova frente inédita para o cinema brasileiro.

Não o conheci pessoalmente. Mas, conhecendo sua obra, era como se tivesse sido íntimo dele, pela força de seu interesse pelos outros e pela própria vida. E, no entanto, a morte de Paulo Gustavo, não esqueçamos, foi mais um crime de descaso, cometido pelos que não se importam que a Covid 19 liquide com cerca de 450 mil brasileiros. Infelizmente, Paulo Gustavo foi um deles.

O Globo, 09/05/2021