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A pátria distraída

 

Ando muito esquecido. Ainda não cheguei ao ponto de não me lembrar do que fui fazer no banheiro, mas costumo esquecer o título do livro que li, o filme que vi ou o nome daquele rosto familiar diante de mim. Achava que era um defeito só meu, coisa da idade. Mas tenho encontrado pessoas bem mais jovens reclamando do mesmo problema, o que dá razão ao especialista americano do respeitável MIT, cujo nome esqueci, que culpa a internet por estarmos perdendo o foco do que interessa e ficando “cada vez mais distraídos”. Bombardeados por uma quantidade avassaladora de notícias diversas em ritmo vertiginoso, sempre interrompido, não conseguimos nos concentrar, refletir; em suma, não prestamos atenção e, assim, não exercitamos processos cognitivos que levam ao pensamento crítico e à criatividade. Como o ser humano vive atrás de novidades, não sobra tempo para digerir o que recebemos, obtendo mais informação do que conhecimento. O resultado é que o déficit de atenção agrava a falta de memória, pois não há como se lembrar mais tarde do que não se reteve na hora. Aprendemos, mas não apreendemos.

E quando isso acontece com o país em relação à sua História? Sobre a nossa distração, Chico Buarque já tinha registrado num genial samba que, feito há mais de 30 anos, ainda se aplica ao atual “sanatório geral”. Ele cantava: “Dormia a nossa pátria-mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/Em tenebrosas transações”. E sobre a falta de memória, o cronista Ivan Lessa dizia que, a cada 15 anos, o Brasil esquece os últimos 15 anos — sem desculpa, porque é assim desde bem antes do advento da internet. Quer dizer, a “pátria distraída”, além de déficit de atenção, sofre de amnésia crônica.

Na política, os exemplos são muitos. Vilões de ontem podem reaparecer como mocinhos. O mais emblemático caso talvez tenha sido o de Fernando Collor, que na campanha presidencial de 1989 dirigiu graves ofensas a Lula e, 15 anos depois, já senador, era recebido em palácio com afagos de aliado pelo ex-desafeto, agora presidente. Recentemente, Eduardo Cunha só surpreendeu Brasília com seus malfeitos porque não se prestou atenção ao passado pontuado de escândalos desse afilhado político de PC Farias. Hoje, ele parece inesquecível; resta saber até quando.

Não se está propondo lembrar para retaliar, ir à forra ou qualquer outro desses impulsos primários. O protesto é contra a perda de memória nacional, já que esquecer o passado leva quase sempre a repeti-lo, o que o país não se cansa de fazer. Ele esquece que anistia e amnésia, embora tenham a mesma raiz etimológica, não querem dizer a mesma coisa. A primeira significa perdão, e a segunda, esquecimento. Perdoar, como bons cristãos, até se admite, mas esquecer, jamais.

O Globo, 13/01/2016