Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Páscoa da infância

Páscoa da infância

 

"Mudou o Natal ou mudei eu?", já indagava o velho Machado, pergunta que se transformou quase em lugar-comum, de tanto ser invocada. Valho-me dela para recordar a Semana Santa. Nos meus tempos de infância ela era realmente de trevas. Da minha aldeia - e ninguém mais do que Faulkner e Górki, em visões diferentes, reteve na criação literária a carga de todo o seu significado -, a lembrança que tenho desses dias enevoados pelo tempo é da cor do roxo que cobria as imagens e do preto que vestia as mulheres.


Tudo ali cheirava ao século 19. A vida girava em torno da religião e da família. A face e o som mais visíveis eram os sinos, que tocavam alegria nas aleluias e dobravam nos finados. Era assim que eles começavam e terminavam a semana, no clarão da ressurreição.


Era como se Cristo estivesse sendo supliciado em Pinheiro e São Bento. As procissões do Bom Jesus da Cana Verde, as representações da Paixão de Cristo na escola paroquial, os lava-pés, as procissões do Encontro e do Senhor Morto e as cidades eram somente recolhimento e fé.


Os meninos eram proibidos de falar. As casas não deviam ser varridas e todos andavam, na minha memória, como sombras que deslizavam tristes, responsáveis pelo martírio do Cristo.


O jejum e a abstinência, a obrigatoriedade de alimentar-se somente de peixes eram hábitos intransponíveis. Não era o bacalhau, das Quaresmas portugueses que herdamos, mas os peixes dos lagos que faziam a beleza das águas naqueles campos, sempre peixes pequenos que Deus criou em abundância, como dizia Vieira, para alimentar os pobres que são muitos.


Meu avô, muitos anos depois, contava-me a história do bacalhau de Amarante, pequeno município à margem do médio Parnaíba. Encomendado pelo comércio local com antecedência de um ano, atravessava "os oceanos" - vinha de Portugal - e, em Parnaíba, apanhava as gaiolas que distribuíam a mercadoria subindo rio acima. Por um desses atrasos de navios e gaiolas, o bacalhau, depois de longa viagem, chegou após a Semana Santa. Ninguém tinha mais motivo para comprá-lo. Então, os comerciante, ante a ameaça da falência, procuraram o vigário para evitar a quebra: era preciso fazer uma nova Semana Santa. E assim foi feito. O comércio salvou-se e o povo rezou mais sete dias.


E os Judas? A caça ao Judas começava nas noites da sexta-feira com grande alvoroço e suspense. Saber quem os tinham feito e onde estavam escondidos. No Sábado de Aleluia, a malhação! Os ensaios do coro dos meninos que deviam anunciar a ressurreição: "Prostrai-vos, ó mortais/ Celebrai o rei da glória/ Cantai, cantai/ A vitória/ De quem vos abre as prisões".


Quando ouvi um meu secretário falar de minha agenda e proclamar "vamos ter feriadão", minhas estruturas quase desabaram.


A Páscoa da minha infância era sagrada, não tinha chocolates, só comunhão e confissão.


Mudou a Semana Santa. Mudaram os tempos e nós mudamos. Mas permanece eterno esse "mistério", o mistério do Deus crucificado que encheu a minha vida e inspira a minha sempre fé. Tudo mudou, menos o menino Jesus da minha aldeia e o Cristo da minha vida.


 


Folha de São Paulo (São Paulo - SP)

e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em 09/04/2004

Folha de São Paulo (São Paulo - SP)e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em, 09/04/2004