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Pagador de promessas

 

O anúncio do presidente eleito Jair Bolsonaro de que editará um decreto facilitando a posse de armas no país é daquelas medidas suscetíveis de causar polêmica, mas muito pouco tem a ver com uma política de segurança pública, que deve ir muito além de uma visão pessoal ou de grupos.

O futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, sugeriu na reunião de primeiro escalão do futuro governo, para tratar dos 100 primeiros dias, que essa fosse uma das primeiras medidas a serem anunciadas, pagamento de promessas de campanha para um nicho importante do eleitorado que elegeu Bolsonaro presidente.

Tem a ver também com um conceito de segurança pessoal que é muito caro a um grupo de cidadãos da classe média, especialmente os das regiões sul e centro-oeste do país, e dos moradores das grandes cidades.

Mas dar posse de arma não é a mesma coisa de liberar o porte de arma. O porte obedece a uma série de exigências que inclui o treinamento em clubes de tiro. A prioridade à posse de arma tem um simbolismo, em busca um efeito dissuasório, mas a medida liberalizadora permitirá apenas guardar armas em casa, não as portar em público.

Os defensores da medida, como o General Augusto Heleno, futuro chefe do Gabinete Institucional, consideram que seu efeito dissuasório pode ser efetivo, reduzindo os roubos em residências. Ele alega que a política de desarmamento não tem tido efeito na redução de crimes, pois o país bate o recorde de mortes violentas anuais.

A medida tem a ver também com reivindicações de certos grupos, como colecionadores, de obter com menos problemas burocráticos a permissão para ter uma arma. Mas a lei continuará a exigir antecedentes negativos, aptidão técnica e higidez mental, nisso não se pretende mexer, e também a demonstração da efetiva necessidade. O decreto apenas esclarecerá melhor o que seria isso, não deixando a decisão ao arbítrio do agente público.

Moradores de regiões violentas das cidades poderão ser autorizados a possuir uma arma em casa, por exemplo, assim como os que vivem em áreas rurais, mas o decreto ainda está em elaboração. O propósito é flexibilizar as normas, sem ter que mudar a legislação, ampliando o acesso à posse de armas aos cidadãos comuns, sem antecedentes criminais.

Um dos objetivos é desburocratizar as exigências legais, tornando definitiva, por exemplo, a permissão para ter uma arma em casa, sem que seja preciso renovar a licença a cada 5 anos. Um dos argumentos dos que defendem a liberalização do posse de armas é que os crimes em abundância que ocorrem no país na maioria são cometidos com armas roubadas, às vezes com armamentos exclusivos das Forças Armadas.

Não seria, portanto, a liberalização das armas que provocaria maior número de crimes. Ao contrário, a medida, além de dar uma sensação de maior segurança aos cidadãos que vivem em áreas perigosas, teria o efeito de dificultar a ação dos bandidos, que passariam a saber que alguém armado pode reagir ao assalto de sua residência.

Bolsonaro costuma dar o exemplo dos Estados Unidos que, muito liberal com relação à venda e porte de armas, tem índices de criminalidade baixos se comparados com o Brasil. No entanto, os números são enganosos, pois os EUA é um país violento, com a maior população carcerária do mundo. E os assassinatos em massa que vemos frequentemente certamente são decorrentes dessa liberalização.

Em Nova York, por exemplo, onde a legislação local não permite portar armas em público, o índice de criminalidade tem sido reduzido. O baixo índice de criminalidade é fruto de uma política nacional de repressão severa, o que não indica que o país não seja violento.

Os índices de criminalidade nos EUA são maiores que o dos países ocidentais mais avançados como na Europa e no Japão. Na América Latina estão os 18 dos 20 países com maiores índices de homicídios, e 43 das 50 cidades mais violentas do mundo. Por volta de 75% de todos os homicídios na região são relacionados a arma de fogo, enquanto o índice mundial é de 40%. 

O Globo, 30/12/2018