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Os que amavam Daniel

 

Quatro anos depois de afirmar a mim e a Roberto D’Ávila a sua ‘coerência’, Dirceu foi condenado por corrupção ativa e formação de quadrilha

Em 2008, José Dirceu declarou a Roberto D’Ávila e a mim numa entrevista: “Mudei muito, mas não nos meus ideais, nos meus sonhos. (...) Se tem uma pessoa coerente, sou eu”. Referia-se à juventude, quando se destacou como um carismático e promissor líder do movimento de 1968 contra a ditadura. Segundo o senador Cristovam Buarque, ele foi “o mais importante personagem de sua geração estudantil; a sua destruição é um pouco a destruição da minha geração”. Quatro anos depois de nos afirmar a sua “coerência”, Dirceu foi condenado no processo do mensalão pelos crimes de corrupção ativa e formação de quadrilha. E anteontem foi recolhido à prisão de novo, agora na operação Lava-Jato, acusado de receber propinas de pelo menos R$ 90 milhões. O petista alega inocência e diz que não há provas, mas quando o então deputado Ricardo Fiuza foi cassado, Dirceu decretou: “O que é público e notório dispensa provas”.

Nos últimos quase 50 anos, Dirceu passou por várias encarnações. Preso em 68 no Congresso de Ibiúna, foi solto em 69, quando alguns companheiros sequestraram o embaixador americano e, para devolvê-lo, exigiram a libertação de 15 presos políticos, entre os quais Dirceu, que foi banido do país, indo para Cuba. Ali treinou guerrilha, em1971 voltou escondido e mudou o rosto com uma plástica (aliás, o amor à revolução foi maior do que a vaidade de quem era louvado também pela beleza e que chegou a implantar 6.710 fios de cabelo numa incipiente calvície). Também adotou o codinome de Daniel e, depois, com o heterônimo Carlos Henrique Gouveia de Melo, foi viver clandestinamente em Cruzeiro do Oeste, no Paraná, onde esteve casado por quatro anos com Clara Becker, que se separou ao saber da verdadeira identidade do pai de seu filho. “Eu amava Carlos Henrique, não José Dirceu”, teria dito.

Com a abertura democrática, Dirceu teve rápida ascensão, chegando ao cargo de todo poderoso ministro da Casa Civil de Lula, de quem se cogitou até que seria sucessor. Nos últimos 12 anos, porém, o consultor de empresas se meteu em tenebrosas transações com as suspeitas empreiteiras da Lava-Jato, o que pode ter-lhe valido sucesso financeiro, mas com certeza lhe custou a reputação. O grande articulador, que era elogiado inclusive pelos adversários por sua competência política, é hoje reconhecido pelo juiz Sérgio Moro por seu “profissionalismo na prática do crime”. Terá valido a pena trocar tanto dinheiro por um melancólico fim de carreira? Parodiando a ex-mulher de Carlos Henrique, os antigos admiradores podem dizer com pesar que amavam Daniel, não José Dirceu — o de agora.

O Globo, 05/08/2015