“Os inocentes do Leblon”, poesia de Carlos Drummond de Andrade de 1940, poderia ter sido escrita ontem, quando os bares do bairro carioca encheram-se de “inocentes” sem medo do amanhã. Aglomerados, sem máscara, “os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram/mas a areia é quente, e há um óleo suave/ que eles passam nas costas, e esquecem”.
Excitados pela liberação açodada e irresponsável dos bares e restaurantes por governantes fracos e oportunistas, os inocentes saíram às ruas para comemorar o quê? Quase 70 mil mortes? Mais de um milhão e meio de contaminados pela Covid-19?
Em vários lugares do mundo, e não apenas no Leblon, multidões saíram às ruas depois de pelo menos três meses de quarentena, e muitos locais já estão tendo que retroceder, com certas áreas na Espanha, e o toque de recolher imposto em Miami.
Em Paris, um festival de música que atraiu milhares de jovens pode ter provocado um aumento da contaminação. Estados Unidos, México e Brasil são responsáveis por mais da metade das mortes mundiais por Covid-19, não por acaso governados por dirigentes negacionistas.
Em plena ascensão da praga, o presidente Bolsonaro dá-se ao desplante de vetar a obrigatoriedade de máscaras no comércio e nas igrejas, e governadores populistas mudam de posição pensando na eleição de novembro.
Como será “o mundo pós-pandemia”? O advogado e escritor José Roberto Castro Neves reuniu um grupo de especialistas para imaginarem o que acontecerá em seus respectivos campos de atuação, e o resultado, editado pela Nova Fronteira, já está nas livrarias.
São prognósticos otimistas, outros nem tanto, em áreas como Medicina, Economia, Humor, Educação, Meio-Ambiente, Cinema, Saúde, e assim por diante. Coube-me escrever sobre política, não a partidária, mas a que rege nossa vida em sociedade.
Fui otimista, mas diante dos roubos de respiradores, de obras superfaturadas em hospitais de campanha, dos primeiros comportamentos no pós-pandemia antecipado, temo ter sido ingênuo. Aí vão alguns trechos:
“A natureza produziu uma cruel metáfora ao nos enviar um vírus mortal que sufoca ao mesmo tempo que provoca uma limpeza no meio-ambiente pela necessidade de ficarmos em casa para tentar salvar-nos.
(...) A peste escancarou também a extrema pobreza e, sobretudo, a desigualdade com que convivemos cotidianamente como se fossem coisas da vida. Milhões de “invisíveis” surgiram do nada para assombrar os governantes, que não os detectavam nem mesmo nos programas sociais.
(...) Se a palavra “política”, do grego “politéia”, que trata das relações sociais na “polis” (Cidade-Estado), define a atuação das diversas camadas de uma sociedade nessa perspectiva, é plausível imaginar que uma sociedade que tenha passado pelo choque que a nossa está passando reveja suas prioridades e torne-se mais interessada em temas que têm sido relegados, como saneamento básico, saúde pública, educação.
(...) Não ser contaminado pela Covid-19 depende de uma decisão individual, mas também do entendimento de que, se protegendo, protegem-se também as demais pessoas que nos circundam.
(...) Entre nós, temas incontornáveis passam a ser o sistema de saúde pública como o SUS, um avanço democrático que mostrou ser essencial no combate à Covid-19, mesmo com suas deficiências e limitações, que devem ser corrigidas a partir do financiamento público reforçado.
(...) A inevitabilidade da morte não significa que ela não deva ser retardada o mais possível, através de uma vida saudável e dos meios de atendimento à população mais carente. A valorização da ciência e da tecnologia é inevitável como política pública de um mundo pós-pandemia.
(...) não haverá espaço para políticas retrógradas e fisiológicas se quisermos participar de um mundo que ganhará uma ressignificação depois do sofrimento provocado por um vírus que nos mostrou nossa pequeneza diante do universo, ao mesmo tempo em que a grandeza do ser humano emergiu da solidariedade planetária.