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O troco de Barroso

 

Ainda estávamos sob o impacto do vídeo, e algumas imagens teimavam em permanecer na memória, uma das quais se impunha: Bolsonaro plagiando Mussolini. “Só um povo armado é forte e livre” — escancarava. — “Povo armado jamais será escravizado. Eu quero todo mundo armado”. Nos dois casos, por “povo” entenda-se milicianos.

Os que procuravam atenuar a sensação desagradável ofereciam como consolo a alegação de que o Bolsonaro de hoje era outro, diferente daquele de 22 de abril, quando participou da reunião ministerial com o corpo pintado para a guerra.

Entre as mudanças, citava-se o encontro selando a paz com os governadores e a aproximação com o centrão, o do toma lá dá cá, outrora maldito. Falava-se até de um “Bolsonaro paz e amor”, distante daquele que soltou mais de 30 palavrões, o de tom agressivo convocando a tropa para a batalha.

No momento mais tenso da sessão, ele permaneceu em cúmplice silêncio quando o aloprado Weintraub, apontando para a Praça dos Três Poderes, disse que por ele “botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF”. Ele é uma contradição em termos: é ministro da Educação sem tê-la nem um pouco.

Outro momento polêmico foi quando Ricardo Salles, mais disfarçado, propõe “ir passando a boiada e mudando todo o regramento”, enquanto a imprensa estava ocupada com a Covid-19, ou seja, fazer como o malandro que espera a vítima se distrair para praticar a ação.

No último fim de semana, o capitão demonstrou que é o de sempre: foi para a rua afrontar as determinações da Organização Mundial da Saúde e, desta vez, transgredir até o que já é lei em Brasília.

O troco veio na forma do discurso de posse de Luís Roberto Barroso no Tribunal Superior Eleitoral, uma fina peça de elegância de estilo, delicadeza das indiretas e sutileza das farpas. Basta a frase de Bolsonaro citada no início deste artigo com a seguinte, de Barroso, sobre o mesmo tema: “É preciso armar o povo com educação, cultura e ciência”.

O discurso de Barroso lavou a alma do brasileiro.

O Globo, 27/05/2020