A ministra Cármen Lúcia pontuou ontem a sessão do julgamento do mensalão que tratava de lavagem de dinheiro não apenas com a clareza de seu voto, mas com a definição de que “o dinheiro é para o crime o que o sangue é para a veia: se não circular com volume, não temos como irrigar o esquema”.
Como já está definido que em grande parte o dinheiro desse esquema criminoso vem da administração pública, a ministra ressaltou que o que foi montado “é um sistema delituoso e grave, alimentado desta maneira”. Alguns votos de ontem, por sinal, já antecipam posições de ministros sobre questões que serão analisadas adiante, como a distribuição de dinheiro a políticos. Cármen Lúcia, em certa altura de seu voto, descreveu que “se teve obtenção de recursos de maneira ilícita e a recolocação e entrega a beneficiários que se colocaram à disposição para se fazer isso”.
Já Dias Toffoli admitiu “ser possível efetivar uma correlação lógica entre os recursos desviados com a conivência de Henrique Pizzolato, tanto no que se refere ao bônus como à antecipação das verbas do fundo Visanet, e os empréstimos tomados do Banco Rural” à lavagem de dinheiro pelas agências de Marcos Valério e seus sócios, afirmando que está comprovado “o chamado valerioduto”. Mas antecipou uma dúvida: se será provado que esse dinheiro serviu para comprar votos no Congresso. Sua definição provocou reação de Gilmar Mendes: “Só por um reducionismo muito forte poder-se-ia falar em um valerioduto. A rigor, é um sistema muito mais complexo do que isso e envolve a participação de autoridades e agentes públicos.” Esse sistema tem alma, exclamou Gilmar.
Outro ponto importante do julgamento foi a tentativa do relator Ricardo Lewandowski e de Dias Toffoli de absolver o advogado Rogério Tolentino do crime de lavagem de dinheiro, sob a alegação de que ele era mero advogado de Valério. Essa desqualificação de Tolentino antecipa posição dos dois ministros com relação a indícios que comprometem o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu.
Tolentino foi quem comprou o apartamento de Maria Ângela da Silva Saragoça, ex-mulher de José Dirceu, a pedido de Marcos Valério, que também foi empregada no banco BMG, por interferência do lobista mineiro. Foi no BMG que Tolentino tomou um empréstimo de R$ 10 milhões, também a pedido de Valério, que, na opinião da maioria do STF, permitiu a lavagem de dinheiro desviado dos cofres públicos através de triangulação bancária com a empresa de Tolentino.
Lewandowski alegou que a questão do empréstimo do BMG não estava sendo tratada no julgamento, só os empréstimos do Banco Rural, por isso não havia nos autos nada que se referisse a Tolentino no item específico de lavagem de dinheiro. “Mais adiante podemos ver se ele é culpado por formação de quadrilha ou corrupção ativa”, alegou o revisor. Mas, a começar pelo relator, vários ministros demonstraram que o processo é unitário, não havendo possibilidade de não se analisar alguém por um delito simplesmente porque os detalhes não estão descritos naquela determinada fatia do julgamento.
Ayres Britto, presidente do STF, lembrou que todos os ministros tomaram conhecimento integral do processo e têm informações sobre as conexões de cada um dos réus. E nos autos havia referência explícita ao empréstimo do BMG, entre outros.
A preocupação com a corrupção foi ressaltada no voto de Ayres Britto, que disse que ela leva à “desnaturação do exercício da função pública, a um comércio ultrajante da função pública, e mais do que isso. A corrupção também leva a uma apatia cívica, a um ceticismo cívico, os cidadãos deixam de acreditar na seriedade do poder público”.
O decano do STF, Celso de Mello, chamara a atenção em seu voto sobre o montante que o crime organizado movimenta pelo mundo, calculado em US$ 1 trilhão “só em matéria de recursos oriundos do tráfico de entorpecentes”. A preocupação, frisou, “é impedir que ela se valha dos agentes da República, que ela penetre no aparelho do Estado, para, a partir dos ganhos colossais, exercer uma gama muito extensa de poder político, em ordem até mesmo de comandar o próprio Estado — o que é terrível e, por isso mesmo, merece toda repulsa. (...) Portanto, a repercussão não é apenas penal, mas na esfera política e constitucional”.
O Globo, 14/9/2012