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O perigo das palavras

 

A mais nova polêmica provocada pelo vice de Bolsonaro, General Mourão, mostra como são pedregosos os caminhos da política, especialmente em tempos de campanha presidencial. As barbaridades que o candidato do PSL diz tocam num nervo sensível da população, como o combate à violência com violência, ou a defesa de uma intervenção militar, e até a tortura como meio de obter confissões, supostamente para salvar vidas.

Essa ė uma pegadinha freqüente: o que você faria se um filho fosse sequestrado e um preso soubesse onde está o cativeiro? Uma situação hipotética que leva a uma resposta emocional que nada tem a ver com o que está em discussão de fundo, que ė a prevalência dos direitos humanos como valor democrático.

Grande parte dos que votam nele aprova essas atitudes, por simplificação ou ingenuidade, quando não por ideologia mesmo. Mas acabar com o 13º salário, não há quem defenda sem pagar um preço político alto. O General definitivamente não sabe esconder o que pensa, e o que pensa muito frequentemente é no minimo polêmico, quando não inaceitável,como foi o caso do autogolpe.

Não foi ele quem lançou a carta do autogolpe, mas o admitiu em meio a uma discussão sobre intervenção militar, abrindo caminho para dúvidas sobre seu compromisso com a democracia.

A alegação de que, se defendesse uma intervenção militar estaria conspirando, e não se candidatando em eleições democráticas, tem o mesmo peso de líderes do PT que afirmam sempre que a atuação do partido tem sido dentro do campo democrático. A questão é não deixar dúvidas sobre isso, com palavras mal ditas ou atitudes que visam cercear a democracia.

Há também a manipulação política das palavras, como aconteceu com sua referência aos lares em que mães ou avós criam filhos sem pais. Na boca do General, soou como desprezo aos problemas dos mais necessitados, como quando o então governador Sérgio Cabral disse que as favelas eram uma fábrica de criminosos.

O médico Dráuzio Varela em entrevista à BBC tratou do mesmo tema, mas em tom de preocupação, fazendo uma análise sociológica da situação, como se pedisse ajuda às famílias carentes. Ninguém poderia supor, pela sua atuação e suas atitudes, que Dráuzio estivesse criticando essas famílias, mas é possível entender as palavras do General como uma crítica a elas.

Até mesmo o número excessivo de filhos, abordado por Dráuzio, soa na boca do General como se culpasse as mães, enquanto o médico culpa a situação social do país. Pode ser que o General tenha as mesmas preocupações do médico, mas coloca as coisas de maneira simplista que acabam chocando as pessoas.

A mesma coisa aconteceu com o 13º salário. Pode ser que estivesse reverberando reclamações de empresários, mas não podia nunca ter defendido a tese como uma anomalia do sistema brasileiro, ainda mais quando o país passa por uma crise econômica sem precedentes e o desemprego bate recordes.

Há precedentes históricos que o General, ou candidatos a político de maneira geral, deveriam conhecer. Desde o famoso caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que tachou de “vagabundos” quem se aposentava cedo e acabou marcado como tendo classificado todos os aposentados de vagabundos.

Em 1945, o Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato a presidente pela UDN com vasta vantagem sobre o candidato getulista, o General Eurico Dutra, fez um duro discurso contra Getúlio. Disse que não precisava dos votos “desta malta de desocupados que apóia o ditador”. Segundo relato da historiadora Alzira Alves de Abreu, do Cepedoc da Fundação Getulio Vargas, o getulista Hugo Borghi descobriu no dicionário que “malta”, além de significar “bando ou súcia”, o que já era ofensivo, também denominava trabalhadores que levavam suas marmitas nas linhas férreas, o que atingia mais diretamente os eleitores pobres.

Daí a dizer que o Brigadeiro estava menosprezando os pobres foi um passo, e o General Dutra venceu uma eleição perdida. Daí vem a definição de que, num país tão desigual quanto o Brasil, Getúlio sempre derrotará o Brigadeiro.

Desta vez há, um Getúlio vivo, atrás das grades em Curitiba, mas outro líder populista na cama de um hospital. Os dois comandam as campanhas de seus seguidores com mão de ferro. Lula dá as orientações, e o PT soltou uma nota criticando duramente o General.

Bolsonaro tem uma grande rede de seguidores na internet e já revidou, desmentindo o General, mas lembrando que quando o PT estava no governo, Jacques Wagner, como ministro do Trabalho, também defendeu o fim do 13º salário. Briga de cachorro grande.

O Globo, 28/09/2018