É difícil fugir a um tema quando ele se impõe avassalador. Pensei em escrever sobre flores ou sobre a Bolívia e seu labirinto. Logo 2006 chegou à minha frente e não tive como afastá-lo.
Meu pai teve um vaqueiro, Ludgero, que contava os anos pelos bezerros: 1948, 50 bezerros, e assim por diante, listava todos. Outra amiga nossa, dona Anicota, que tinha uma questão sobre umas terras do Engenho da Anta que durara mais de 20 anos, já falava deles pelos eventos do processo: 1953, "ano em que saiu a sentença que deu ganho de causa a meu irmão, mas em 1954 teve o acórdão do tribunal que botou abaixo tudo".
A marcação dos anos foi uma invenção do homem. O padre Vieira, com esse sentimento, não via o ano, mas os anos, e pregava desejando "bons anos", não só o vindouro mas todos. Para mim, a cada ano saúdo o Ano Novo, mas minha gratidão se volta para o Ano Velho. Quando transpomos a marca do tempo, recordo que, nos 365 dias que vivemos, nosso coração a cada dia bombeou 343 litros de sangue por hora, 8.000 litros por dia e 3 milhões no ano, para oxigenar os 10 trilhões de células do nosso corpo, no milagre da vida, na harmonia dessa máquina que nos distingue dos outros animais pelo pensar. Ela alimenta o nosso sonho de sonhar, os sentimentos do amor, da fraternidade, da paixão, da solidariedade humana. Todos os que vivemos e estamos aqui na Terra podemos louvar o ano que passou e renovar esperanças sobre o que vem, porque somos vitoriosos. Na evolução, somos produto de uma linhagem em que tudo deu certo. Jay Gould, pensando sobre isso, observou: "Nossa espécie nunca se rompeu nenhuma vez em bilhões de momentos em que poderia acabar". E quantas espécies acabaram.
Mas, para mim, esse mistério é tão grande e tão inexplicável quando compreendemos que toda ciência é inevitável, mas ela só se completa na plenitude da fé. É a presença de Deus na obra da criação que fecha e acaba o ciclo da dúvida.
Ao meditar sobre a vida na contagem dos anos, a expressão que me ocorre é de Hannah Arendt, que fala da obrigação de nossa "gratidão pelo mundo".
Os gregos pensavam que na amizade residia boa parte da felicidade e esse era um dos requisitos "fundamentais para o bem-estar da cidade" e, assim, ligavam a filantropia ao "amor dos homens". Os romanos já caminhavam na noção de "humanidade" como sentimento de solidariedade entre os homens: sermos humanos.
Ano Novo, Ano Velho, renovação de esperanças no mundo com menos violência e mais amigos.
Mas, infelizmente, estamos longe de chegar à utopia de um tempo solidário.
Bandeira Tribuzzi, um grande poeta ainda a ser descoberto, como foi Sousândrade, tem um poema sobre a Máquina do Mundo em que ele diz "que sonho raro / será mais puro e belo e mais profundo / do que esta rica máquina do mundo", acrescentando o aspecto corporal quando diz "nos rins se processa um mistério tão sério / que é injusto esquecê-lo".
Num tempo da morte das utopias, rezemos pela sua ressurreição, um mundo de paz, de humanidade, sem desigualdades, sem fome e sem miséria.
Tudo isso para chamar todos os homens de amigos e desejar um Ano Novo de grandes alegrias, sem esquecer o Ano Velho com rins e coração funcionando bem.
Folha de São Paulo (São Paulo) 30/12/2005