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O modo de ser americano

 

Engana-se quem pensa que Hollywood produz só entretenimento. O que caracteriza os filmes americanos bem-sucedidos, antigos ou recentes, é justamente o compromisso com o chamado “american way of life”, as bases culturais que geraram e geram o comportamento americano. No cinema, isso vem desde que ele foi inventado e logo se tornou uma indústria.

Desde então, o pessoal esperto da Costa Oeste, graças aos banqueiros não menos espertos da Costa Leste, entendeu o alcance do cinema. E decidiram domar a nova invenção, à imagem e semelhança da sociedade que a produzia. Tanto que o presidente Franklin Roosevelt, que, nos anos 1930, salvou a economia americana em frangalhos, lançou o mote que recuperava o orgulho nacional através do cinema, com a política dos três Fs: “Flag follows films”. Ou seja, em bom português, a bandeira americana vai junto com os filmes aonde eles chegarem.

O pai de todos os filmes, “Nascimento de uma nação”, de David W. Griffith, realizado com a proposta do que viria a ser a linguagem cinematográfica universal, tinha como assunto as lutas raciais no Sul, tendo a Ku Klux Klan como trincheira ideológica e política de seus heróis. Os filmes de cowboy, que são feitos até hoje (mesmo que um pouco mais amargurados), são crônicas heroicas da conquista do território americano. Os westerns contam a faina civilizatória dos herdeiros do Mayflower, os americanos louros que acabaram com índios, mexicanos e outros selvagens indesejáveis.

Todos esses filmes foram sempre uma atualização dos conceitos e projetos americanos de moral e bons costumes. Tinham que ter, portanto, uma fonte comum — as pessoas na sala escura de projeção. Os filmes eram feitos para elas, tinham que estar de acordo com elas, com o que faziam e pensavam da vida, sua ação e ideias sobre o mundo, enquanto cidadãos americanos.

Os blockbusters contemporâneos respeitam essa tradição da cultura americana no cinema americano. Do “Pantera Negra”, de Ryan Coogler, cineasta negro como seu herói, aos “Vingadores: Ultimato”, dos irmãos Joseph e Anthony Russo, vindos dos mais populares shows de televisão, os conflitos que encenam acabarão sempre com a vitória do gênio social americano, que, em geral, está na própria mecânica do filme que fazem. É ingenuidade achar que as obras com cara mais intelectual, candidatas potenciais ao Oscar, por sua singularidade, inteligência e brilho formal, estão livres dessas obrigações culturais, sem as quais também seriam bem aceitas. Três filmes recentes, dos mais cotados, são bons exemplos disso.

Em “Yesterday”, de Danny Boyle, o uso que o músico faz de canções que não são dele para fazer sucesso e ganhar dinheiro é justificado. Não só por sua confissão no final do filme, de cortar o coração, mas sobretudo pela recuperação do clima social que os Beatles pregaram durante seu curto tempo de glórias, baseado no amor e no desprendimento. Para que isso fique mais claro, ainda temos o direito de ver John Lennon velho, de cabelos brancos, usufruindo da paz e do amor que sempre pregou em vida e nas canções.

Em “Era uma vez em Hollywood”, é irritante o modo com que Quentin Tarantino trata nossas esperanças de outros tempos. Todos os hippies do filme são uma grande família Manson, habitando juntos uma cidade insuportavelmente vagabunda e pervertida. No final, a família Manson propriamente dita se revela incompetente e burra, se confunde em sua missão e é castigada com inacreditável violência, selvagem e desumana, pelo verdadeiro herói do filme, o personagem de Brad Pitt, um ator muito bom num papel muito ruim.

E, finalmente, em “Coringa”, de Todd Phillips, diretor de boas chanchadas, como “Se beber, não case”, partes 1, 2 e 3, ficamos sabendo como a maldade dos outros cria malucos sanguinários, que matam e esfolam cheios de razão, pois passaram a vida sendo humilhados por gente que não achava graça em seus números de humor. “Coringa” é o elogio de uma vitoriosa tradição americana, a tradição da eficiência. Se você fizer um herói dramaticamente bem construído, dentro das regras mais rigorosas da dramaturgia, fazendo com que o público entenda ou até se identifique com ele pelo seu sofrimento ao longo da história, esse herói pode dar tiro ou porrada em quem bem quiser, cortar a faca quem bem entender, que não será nunca confundido com o vilão.

A vitória da eficiência pode ser também a vitória do mal, tudo depende de onde você se encontra. Isso também é cultura americana. Ou “american way of life”.

O Globo, 20/10/2019