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O dominó e a mentira

 

Tivemos, sem dúvida, com os tristes e trágicos episódios de Madri, em que morreram tantos inocentes e se perpetraram tantas crueldades, algumas lições. O terrorismo jamais dispensa alertas máximos; suas motivações políticas ou religiosas tendem a ser permanentes num mundo marcado pelo fanatismo e pelo confronto. Suas causas são difusas e variadas, seus efeitos são trágicos. Ele cria uma neurose do medo - para usar a definição consagrada-, que se propaga por todos os campos.


A história da Espanha não está vazia de episódios sangrentos. A luta pelo Estado unitário deixou feridas não cicatrizadas, que estão sempre sangrando, na Catalunha e no País Basco. Os atos terroristas no país são uma constante do dia-a-dia.


Mas a grande lição do 11 de Março de Madri foi o preço da mentira. Era mais que evidente que o atentado estava vinculado à posição tomada por Aznar na aventura de George W. Bush no Iraque. O próprio governo espanhol sabia mais do que ninguém disso. Com a proximidade da eleição e a perplexidade de que todos foram tomados, o desempenho do governo espanhol diante da situação foi de grande mediocridade -ou melhor, de inacreditável despreparo. Nada custaria, ou custaria menos que o preço que se pagou, falar a verdade: "A Espanha entrou nessa guerra porque conhecemos o terrorismo de casa. Estamos sendo atacados, mas não serão os terroristas que irão intimidar a Espanha ou interferir no resultado de suas eleições". A unidade dos países é interesse nacional e deve predominar nas decisões políticas, não o interesse partidário, quer nas horas boas, quer nas dificuldades e crises. Aznar foi menor do que Bush - o que era considerado impossível-, que, diante da mesma situação, teve a capacidade de mobilizar a opinião pública para apoiar suas decisões. Seus erros vêm depois e são desmoronadores para todo o mundo contemporâneo. Aznar errou desde o início, porque escolheu a mentira.


"A mentira ou vos tira o que tendes ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba ou vos condena", já pregava o nosso sempre lembrado padre Vieira. A mentira de Aznar tirou a vitória que tinha assegurada e deu a derrota que não esperava. Ele, que é da terra de Cervantes, não acolheu a lição dada a Sancho Pança quando ia assumir a farsa do governo de sua ilha. Dizia Dom Quixote: "Assim deves fazer, Sancho. Dar-me-ás aviso de tudo o que neste caso descobrires e de tudo aquilo que no governo te ocorrer". Bastava ter dito a verdade ao povo, tudo o que estava descoberto, e não encobrir o céu com uma peneira.


O exemplo da Espanha é trágico também por mostrar o poder dos terroristas de influir na vida interna dos países e mesmo decidir seu caminho. Tudo isso não exime o erro da entrada do país, de corpo e alma, contra o sentimento da Europa, na aventura iraquiana, na qual havia a grande mentira que é a fonte de tantas mentiras, a tal existência de armas de destruição.


Falava-se, no passado, do efeito dominó, que Kennedy invocou para evitar a queda de países da Ásia, leia-se Vietnã, em mãos dos comunistas. Agora, vemos o efeito contrário. Aznar já foi, Blair que se cuide e Bush que prepare o pijama. A mentira costuma cobrar seu preço.




Folha de São Paulo (São Paulo - SP) e

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em 19/03/2004

Folha de São Paulo (São Paulo - SP) eJornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em, 19/03/2004