O episódio em que o ex-ministro José Dirceu levou uma bronca do então presidente Lula, incluído no seu livro de memórias, que Ancelmo Gois revelou ontem, foi talvez o primeiro choque petista na burguesia brasileira, poucos meses depois de chegar ao poder.
No fim de 2003, no IV Foro Iberoamérica, reunião de empresários, intelectuais, acadêmicos e autoridades de países da América Latina, Portugal e Espanha, o chefe do Gabinete Civil do novo governo brasileiro disse que o Brasil pensava articular uma parceria militar entre os países da América do Sul para se contraporem aos Estados Unidos. No dia seguinte, foi desautorizado por Lula: “Não sabia que tinha lhe nomeado ministro da Defesa e das Relações Exteriores”.
Eu estava lá, e verifiquei pessoalmente o rebuliço que causou nos meios políticos e diplomáticos, e especialmente entre os empresários, brasileiros e estrangeiros, alguns dos principais investidores no Brasil, como o milionário Carlos Slim.
Dirceu, visivelmente encantado com o efeito de suas palavras, disse a empresários preocupados que eram apenas “reflexões”. Conforme relatei na ocasião, gerou reflexões mesmo, e algumas preocupações. “Parte da plateia era muito sensível a certos temas levantados pelo ministro, que misturou suas reflexões com histórias do tempo em que era clandestino e vagava pelos aeroportos do mundo armado e com passaportes falsos.”
Descrevi um almoço nos jardins da mansão do casal Ivo Rosset e Eleonora Mendes Caldeira, desenhada por Wesley Duke Lee em Campos de Jordão, que serviu de palco para o empresariado digerir, junto com uma perdiz, algumas percepções de Dirceu, que já não estava presente. “Difícil digestão, não apenas pelo aspecto militar levantado, mas especialmente pelo lado político de algumas observações”.
Não passou despercebido, por exemplo, que, ao falar de Cuba, o ministro não fez nenhuma referência direta às restrições democráticas na ilha. Houve também quem tenha se preocupado com o fato de o chefe do Gabinete Civil de Lula ter se referido à sublevação que derrubou o presidente da Bolívia como um exemplo da “força do poder popular no continente latino-americano”.
Mas, em relação à crise política na Venezuela, teve comportamento totalmente diferente. Para Dirceu, tanto a revolta popular na Bolívia como a derrota do presidente Uribe na eleição na Colômbia seriam “sinais de que as reformas sociais na região precisam ser apressadas”.
Quando se referiu à Venezuela, porém, o ministro tratou a campanha do plebiscito, previsto na Constituição venezuelana, como uma tentativa golpista. Ao fazer essa afirmação, estava ao lado do empresário Gustavo Cisneros, um dos mais ferrenhos adversários do presidente Hugo Chávez naquela ocasião, e estimulador do plebiscito que tentou tirá-lo do poder.
A defesa da integração militar na América do Sul, por seu lado, trouxe de volta temores que já haviam surgido durante a campanha eleitoral. Os presentes consideraram que não fora à toa que José Dirceu citou China, Índia e Rússia como exemplos de países que impõem suas presenças no cenário mundial também pelo poderio militar. Não por acaso, os três possuem a bomba atômica.
Quando, em um debate na campanha presidencial com militares, Lula criticou a adesão do Brasil ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, numa referência direta aos países desenvolvidos que não abriram mão de seus arsenais, afirmou que o acordo só teria sentido se todos deixassem de usar armas nucleares.
Logo no início do governo, o ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral, defendeu, em uma entrevista à BBC, que o Brasil não podia renunciar a nenhum conhecimento tecnológico, nem mesmo sobre a bomba atômica.
Relatei na ocasião que todas essas idas e vindas do governo frequentaram a cabeça dos que ouviram o ministro José Dirceu misturar invasão da Amazônia pelos Estados Unidos e a tese de que a soberania nacional está intimamente ligada ao poderio militar das nações. Mas teve apoio nos dias seguintes de países da região. Era o embrião da união dos governos bolivarianos.