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O canto livre de Nara Leão

 

Isabel Diegues, filha mais velha da cantora, escreve sobre a série do Globoplay que conta a trajetória de Nara em cinco episódios

Renato Terra acaba de lançar, pelo Globoplay, “O canto livre de Nara Leão”, uma série em cinco episódios. É um rico material audiovisual sobre a grande cantora, sem tentar reproduzir seu jeito nos outros personagens. Isabel Diegues, sua filha mais velha, escreveu o texto abaixo sobre o que viu. Acho que a opinião de Isabel é mais importante do que tudo que se puder dizer sobre o canto livre de Nara.

“Ao assistir ‘O canto livre de Nara Leão’, série dirigida por Renato Terra, que é conduzida pela fala doce e arretada de Nara, contundente e cheia de humor, senti a maior alegria. Vê-la, ouvi-la, estar perto dela e de seu jeitinho, assistir seus amigos contando histórias com afeto, me deu uma saudade danada. E como era linda a minha mãe, com seus olhos acesos e o sorriso imenso.

Nara era uma mulher inquieta, curiosa. Como ela mesma diz logo em um dos episódios da série, ‘eu acho graça é de descobrir coisas novas, na vida’, fazer sempre o mesmo lhe parecia chato. E assim gravou os discos que escolheu gravar, sempre na contramão das expectativas, a seu modo, com as canções e os compositores de que gostava.

Costurando cada episódio com as conversas e entrevistas de Nara de toda uma vida, na voz dela mesma, a série apresenta uma dimensão talvez desconhecida para a maioria das pessoas que não viveu dos anos 60 aos 80; revela sua personalidade, suas escolhas, seu modo de estar no mundo, dando contornos a uma mulher incomum, à frente de seu tempo. Com as gravações em que Nara canta canções de seu repertório singular e múltiplo, de compositores que vão de Chico Buarque a Nelson Cavaquinho, de Cartola a Sidney Miller, de Roberto Carlos a Caetano Veloso, de João Donato a Paulinho da Viola, a série reafirma aquela que se recusava a ser apenas a musa: Nara cantava, tocava seu violão, e era pesquisadora voraz, descobridora de talentos da música feita no Brasil em seu tempo.

Quando meu filho nasceu, fazia pouco mais de dez anos que minha mãe havia falecido. Parecia algo distante no tempo, mas ainda colado na pele. Me tornar mãe do José me aproximou de Nara. Não pensava muito a respeito, apenas acontecia. Me via parecida com ela e, ainda assim, diferente. E mais do que pensar no que ela faria ou me diria, pensava no que eu diria a ela. E em como compartilharíamos a presença desse filho-neto.

Nara tinha suas ideias próprias e só fazia o que queria. Do mesmo modo, não se intrometia na vida de ninguém, dizia o que vinha à cabeça, mas acreditava que cada um devia escolher seus caminhos em liberdade. Desse jeito criou os filhos, a mim e ao meu irmão Francisco. Lá em casa tinha fruta e tinha bala, tinha arroz integral e tinha miojo, tinha hora do dever de casa e tinha quintal pra brincar e acampar no telhado, tinha piscina Tone e muro pra pular pra casa do vizinho Menescal, que porta não tinha a menor graça. Tinha espaço, tinha tempo, tinha rede e tinha colchonete pras crianças dormirem no quintal. E a gente inventava o que queria ser e fazer.

Desde bem pequeno, eu falava a José da vovó Nara e colocava suas músicas pra tocar. Um dia, aos 4 ou 5 anos, ele me disse: ‘Maior sacanagem eu não ter conhecido a vovó Nara.’ Hoje meu filho tem a idade que eu tinha quando ela se foi. E Renato Terra o levou pra colaborar nesta série sobre sua avó. Desse modo, José pôde ir fundo no universo de Nara. Leu, estudou, ouviu, assistiu, entrevistou seus amigos com o Renato, uma imersão emocionante, que eu jamais tive a oportunidade — ou a coragem — de fazer. Sou filha, não especialista. Me acredito uma facilitadora daqueles que querem pensar sobre Nara, escrever sobre Nara, filmar sobre Nara. E rever minha mãe, pelos olhos do Renato, da Jordana, do Dudu, do Dé e do José, me trouxe uma emoção imensa. Obrigada”.

O Globo, 09/01/2022