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O Brasil e a China

 

Até a queda do Muro de Berlim e a súbita débâcle do "socialismo real", não se considerava compatível com os imperativos da razão e da teoria político-constitucional um governo representado pela coligação de partidos antagônicos, um neoliberal de mãos dadas com um comunista. Respeitava-se um mínimo de coerência ideológica no exercício do poder estatal, admitindo-se apenas parciais concessões no mundo das idéias, sem serem afetados os pontos essenciais dos respectivos programas.


Muito embora as agremiações políticas continuassem distintas pela preferência dada a diversas diretrizes político-sociais, vieram predominando cada vez mais acordos baseados tão-somente na convergência de determinados interesses, com as mais diversas partilhas no plano da ação governamental.


Pode-se dizer que assistimos ao fim da história político-constitucional caracterizada pela permanente sintonia entre valores de ordem teórica e prática, em virtude da opção ditada pelas mais contraditórias e pragmáticas linhas de interesse, de forma a alcançar a fruição do poder, convertida em objetivo predominante e final dos partidos, como está acontecendo nos países europeus de regime parlamentarista.


Há, todavia, casos em que se vai além de acordos ou composições concluídas no seio dos Congressos, operando-se verdadeiras fraturas na estrutura mesmo do Estado, que passa a ter duas faces institucionais contrapostas, como está acontecendo no Brasil e na China.


A começar por esse gigantesco país asiático, verificamos que ele tem duas existências pragmaticamente conjugadas, apesar de serem antagônicas no plano das idéias: uma representada pela "ditadura comunista", uma das mais violentas do mundo, operando despoticamente "interna corporis"; e uma outra que se projeta internacionalmente como "domínio da livre empresa", regida, no campo econômico-financeiro, pelas leis do mercado seguidas nas nações democráticas.


É essa duplicidade de feições que põe em risco todas as relações com a China, a qual é, de um lado, uma arbitrária potência político-militar e, de outro, um poderoso parceiro econômico, comprometendo-se a decidir e a agir como tal, segundo os padrões vigentes no Ocidente, com base na livre-iniciativa, com a mais absoluta promessa de obediência ético-jurídica aos negócios e obrigações por ela realizados.


Assim sendo, estamos perante duas entidades geográficas distintas, coexistindo a negação mais completa dos direitos da personalidade individual com o mais declarado e assumido empenho de respeitar o livremente pactuado pelos indivíduos que a compõem.


Apesar das gigantescas diferenças que os separam, Brasil e China têm muito em comum, a começar pela existência da maior parte da população que é excluída dos bens que a ciência e a técnica hoje propiciam.


No que se refere ao regime político e aos problemas sociais, as analogias são impressionantes, pois também o povo brasileiro, "mutatis mutandis", apresenta duas faces distintas, correspondentes às diversas forças e aos objetivos em conflito no Partido dos Trabalhadores, o qual, no tocante aos problemas econômico-financeiros, é liberal e individualista, enquanto é socialista e estatizante no que se refere à ideologia política por ele proclamada.


Na realidade, o PT nasceu com a finalidade precípua de destruir o sistema capitalista, mediante a luta de classes e todos os processos de conquista do poder estatal.


O prezado amigo e confrade José Pastore com razão pergunta: "Como conciliar o PT dos 'três mosqueteiros' (Palocci, Furlan e Rodrigues), que fazem tudo para garantir aos investidores liberdade de ação e direito de propriedade, com o PT de vários outros ministros, que incentivam a invasão de terras e órgãos públicos e privados, que desejam submeter o conteúdo das universidades às 'organizações de base', que querem garrotear a cultura e a imprensa, que nomeiam milhares de dirigentes sindicais para funções técnicas, que tratam os bens do governo como de sua propriedade, e que usam recursos das empresas estatais para acirrada propaganda política?"


Em artigo publicado neste jornal em 15 de janeiro do corrente ano (Variações sobre competência), já tive ocasião de demonstrar que o PT tornou sua a doutrina do grande líder comunista leninista italiano Antonio Gramsci, o qual veio dar ao marxismo a missão de superar o capitalismo graças à conquista dos valores culturais que lhe servem de base. Na linha desse projeto político, o presidente Luiz Ignácio Lula da Silva considerou o MST "um dos movimentos mais respeitados e mais sérios do País".


Nesse sentido, o MST acaba de atingir o ponto mais alto de sua atividade cultural, inaugurando em Guararema a Escola Nacional Florestan Fernandes, destinada a conferir diplomas de curso superior, cujo objetivo é subordinar a educação, em todos os seus graus, aos interesses das massas, e não aos das oligarquias capitalistas dominantes.


Tão relevante e decisiva é essa iniciativa que a ela não podia faltar a palavra glorificadora do professor Antonio Candido, o grande líder da cultura da esquerda no Brasil. Em discurso que tomou toda uma página da Folha de S.Paulo, o referido mestre enalteceu a homenagem prestada a Florestan Fernandes, cujos ideais corresponderiam aos do MST, "que possui a fibra militante e o alcance revolucionário que ele tanto prezava".


Eis aí a outra face do atual governo, no qual o MST pode ser um partido político sem registro e manter um imenso quadro de ensino, desde a cartilha elementar à universidade, totalmente desligado do Ministério da Educação.


 


O Estado de S. Paulo (São Paulo) 12/02/2005

O Estado de S. Paulo (São Paulo), 12/02/2005