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Nossa geleia geral

 

A política brasileira nos últimos anos vive em uma espécie de bolha, trancada em uma pseudo realidade que cada grupo político cria para si e para os adversários, que se tornam inimigos a serem aniquilados.

O governo Bolsonaro diz-se liberal na economia e conservador nos costumes, e é chamado de fascista. Os governos do PT são acusados de terem tentado implantar o comunismo no Brasil.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, defende a tese de que o Brasil foi governado pela social-democracia nos últimos 24 anos, misturando na mesma panela os governos do PSDB, PT e PMDB. Todos com diversos matizes de esquerda. O PT acusava o PSDB ser ser de direita.

Como se vê, uma mistura que não faz sentido, serve apenas para emparedar adversários, rotula-los e facilitar os ataques. É fácil dizer que Bolsonaro é fascista, assim como que Lula é comunista. Mas os dois são mesmo autoritários, uma das características de governos fascistas ou comunistas, mas não suficientes para assim declara-los.

Dizer que o PSDB é de direita transformou-se em instrumento político petista para encurralar os tucanos, no tempo em que ninguém queria ser de direita no Brasil e os dois partidos dividiam entre si a disputa política. O máximo que políticos hoje apoiando o governo Bolsonaro admitiam é serem de centro-direita.

Mas chamar o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ou o senador Jose Serra, de direitistas chega a ser patético. Assim como dizer que Lula é comunista, como acusa Bolsonaro.

Lula, com muito esforço, pode-se dizer que é de esquerda, pela influência de grupos da esquerda que se uniram ao sindicalista para fundar o PT. Mas até mesmo isso Lula já negou em diversas ocasiões. Certa vez disse que uma pessoa mais velha ser de esquerda é porque está com problemas.

Com a defesa do socialismo em seu programa nunca retirada, o partido tem sim socialistas em sua direção, e planos de aparelhar o Estado. Como o socialismo é entendido como uma etapa em direção do comunismo, pode-se dizer que o PT mirava o comunismo, mas não há nenhuma indicação concreta nesse sentido, a não ser a bandeira vermelha que virou alvo político da direita: “Nossa bandeira nunca será vermelha”.

Tem ainda ligações estreitas com partidos de esquerda na América Latina, mas a chegada ao poder fez com que a maioria deles, inclusive e a partir do PT, se envolvesse em esquemas de corrupção com empreiteiras brasileiras que, com o poder dissolvente do dinheiro, como dizia Marx, transformou esses líderes esquerdistas em presidiários, como Lula, ou foragidos como Evo Morales, da Bolívia, ou Rafael Correia do Equador.

Como é possível dizer que nunca houve uma política liberal na economia brasileira diante do programa de privatização do governo de Fernando Henrique? Basta relacionar algumas: Vale, Eletrosul, sistema Telebras, CSN, a abertura dos setores elétrico e de petróleo à iniciativa privada.

Por essas e outras, o PT classificou o PSDB de direitista, enquanto o ministro da Economia Paulo Guedes o chama de esquerdista, deixando para o governo Bolsonaro os méritos de uma política econômica liberal apenas anunciada.

A reforma da Previdência, por exemplo, é a mais ambiciosa já aprovada, é verdade, mas ela vem sendo reformada desde o governo FHC, passando por Lula, por Dilma e Temer.

Assim como ser de esquerda não quer dizer que o sujeito seja comunista, também ser de direita, ou mesmo extrema-direita, não quer dizer que seja fascista. Há diversos outros ingredientes que precisariam ser incluídos para caracterizar-se o governo Bolsonaro como fascista, assim como os do PT de comunistas, embora os dois regimes tenham ponto de contato.

A exaltação do nacionalismo como instrumento político é encontradiça na retórica de Bolsonaro, mas não na realidade do país. Pode ser uma meta a atingir. Tanto Lula quanto Bolsonaro são líderes populistas, e que incentivam o culto à personalidade. Mas não são elementos suficientes para rotula-los definitivamente.

  O controle dos meios de comunicação e da cultura é um objetivo claro de Bolsonaro, como foi de Lula. Uso da violência estatal e mesmo do terror é outro ingrediente que não se encontrou no governo Lula nem no de Bolsonaro, embora em ambos os casos tenha havido a atuação de milícias, digitais ou não, acobertadas pelo governo, mas não oficialmente. Assim como não há vontade de expansão territorial, comum ao fascismo e ao comunismo. Sobretudo, há o sistema de pesos e contrapesos da democracia.

O Globo, 02/02/2020