Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > No fio do bigode

No fio do bigode

 

Se vencer no primeiro turno, o ex-presidente Lula não pode cair na esparrela de que a maioria dos eleitores terá votado nele por sua história, por seu carisma. Assim como Bolsonaro nunca foi dono dos 58 milhões de votos que teve em 2018, também Lula não será eleito no primeiro turno, se for, porque o PT, ou mesmo ele, detém a preferência hegemônica dos cidadãos brasileiros.

Bolsonaro acabou perdendo boa parte de seu eleitorado, pelo menos 20%. Está cada vez mais próximo dos 30% que dos 40% dos votantes. O Brasil é um país cheio de paradoxos. Muitos dos que votaram em Bolsonaro em 2018 não são bolsonaristas, o escolheram para conter o petismo. Agora, buscam em Lula a saída para se livrar da tragédia que foi seu desgoverno.

Um exemplo é o jantar dos empresários como ex-presidente. Lula foi ao PIB, que já queria há muito conversar com ele. Ele foi adiando um convite feito há muito tempo, queria deixar o encontro para o segundo turno, mas antecipou-o diante da possibilidade de ganhar no primeiro, porque quis colocar os empresários como mais um elemento indicativo de um governo de centro, sem radicalismos.

Foi um encontro de compromissos, ainda que 'no fio do bigode', não escritos, mas como um voto de confiança dos empresários, que não estão necessariamente convencidos de que a melhor solução seja a volta do PT ao governo. Simplesmente, a vitória de Lula parece estar precificada pelo mercado a esta altura. Vamos ver o que o ex-presidente fará com esse gesto dos representantes do dinheiro.

Todas as adesões que vem tendo do centro, inclusive de ex-ministros do STF que estiveram à frente do processo do mensalão, como Joaquim Barbosa, Celso de Mello ou Ayres Britto, ampliam o espectro político de que Lula precisa para ganhar a eleição. Lula terá muitos votos -os 30% que o PT sempre teve, como acréscimo dos anti bolsonaristas ou dos que se arrependeram de votar em Bolsonaro, fundamentais para sua vitória -no primeiro ou no segundo turno.

Se Lula acha que estará perdoado e que todos estarão felizes caso ganhe no primeiro turno, está enganado. Uma parcela muito grande dos que votarão nele estará no dia seguinte de olho no que fará, exigindo que cumpra o que está insinuando nesta campanha. Lula ainda não assumiu compromissos por escrito com seus eleitores, mas a esses basta seguir o líder. Os que levarão Lula eventualmente a vencer no primeiro turno ainda estão aguardando sinais mais claros que os já dados.

Geraldo Alckmin como vice, Meirelles se acercando, o voto útil atingindo boa parte da classe média por meio do apoio de intelectuais e artistas indicam que um terceiro governo Lula será mais parecido com o primeiro do que com o segundo mandato. Lula cita o que já fez nos governos anteriores para justificar que não precisa escrever nada, porque já sabemos o que fez. Sabemos, e pode ser bom ou ruim.

Um ganho imediato será no tocante ao meio ambiente. Uma vitória de Lula, com o apoio de Marina, muda imediatamente a percepção internacional a respeito do Brasil, e abrem-se caminhos para a volta de financiamentos internacionais. Pode ser ruim se, para se reaproximar do Centrão, Lula se utilizar do mesmo esquema de corrupção que marcou seus governos. O ministro Gilmar Mendes pode afirmar que Lula é inocente, a Justiça pode tecnicamente considerá-lo inocente, mas não é essa a percepção da população.

O entendimento é mais próximo do famoso 'rouba, mas faz' que do 'homem mais honesto do mundo'. No segundo governo, para eleger Dilma, o ex-presidente aprofundou uma política econômica heterodoxa, uma tal de 'nova matriz econômica' com Guido Mantega, depois da saída de Antonio Palocci, responsável pela manutenção da política do governo Fernando Henrique.

A era Mantega resultou em aumento artificial de 7, 5% no PIB, mas abriu caminho para um rombo na economia que nunca foi consertado e levou o país para o buraco. No segundo mandato, que quase perde para os tucanos, a então presidente Dilma ainda tentou dar um cavalo de pau na economia chamando para o ministério da Fazenda Joaquim Levy, mas a máquina petista colocou em seu lugar Nelson Barbosa, e a falta de apoio político no Congresso agravou o isolamento da presidente, que acabou impedida.

Lula tem tentado se manter distante da gestão de Dilma, o que pode indicar que entendeu o que aconteceu. A escolha de seu ministro da Fazenda será crucial para a manutenção de um apoio que apenas o petismo e a esquerda não lhe darão. Somente uma liderança política como Palocci poderia ter reagido às tentativas de sabotagem que os 'tucanos' chamados para ajudar no governo Lula sofreram. Quem será o político que exercerá esse papel? O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha é muito citado, mas não me parece uma liderança capaz de resistir à máquina petista.

Se Lula acha que estará perdoado e que todos estarão felizes caso ganhe no primeiro turno, está enganado.

O Globo, 29/09/2022