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Nem pêsames o governo deu à família de Domingos Oliveira

 

Como sempre, a última palavra foi de Fernanda Montenegro, ao resumir a comoção da classe artística pela perda de Domingos Oliveira: “É uma época de sonhos que vai com ele. Tínhamos esperança de um país melhor, uma crença no nosso futuro”, disse ela no discurso de despedida no velório do autor, diretor e ator, que morreu aos 82 anos, deixando 120 obras entre filmes, livros, peças e séries de TV.

Deixou também duas comoventes cartas para a mulher, Priscilla, e a filha Maria Mariana, em que exalta a vida como “uma dádiva, uma aventura gloriosa”. O maior sinal do desapreço de nossos governos em relação à cultura está no silêncio que prefeito, governador e presidente dedicaram à morte de Domingos Oliveira. Nem os pêsames, como é praxe reverenciar seus mortos ilustres. Nem um tuitezinho. Eles consideram os artistas como estorvo, mas o doce autor de “Todas as mulheres do mundo” dizia que “o amor é mais importante que a política”.

O presidente tem como álibi o fato de que estava ocupado com a (des)articulação de seu governo e o bate-boca com Rodrigo Maia, um barraco que “parece briga de rua”, como bem definiu o general Hamilton Mourão.

Além disso, Bolsonaro estava tentando digerir as recentes declarações de Sebastián Piñera, para quem as frases do seu colega brasileiro sobre as ditaduras latino-americanas são “tremendamente infelizes. Não compartilho muito do que Bolsonaro diz sobre o tema”.

Uma das frases “infelizes” foi: “Quem procura osso é cachorro”. Com o estilo tosco que lhe é peculiar, o então deputado tinha pendurado na porta de seu gabinete um cartaz referindo-se à busca dos corpos dos desaparecidos durante a nossa ditadura militar. Por essa e outras é que grupos de direitos humanos pediram que o visitante deixasse o Chile.

A lição de Piñera a seu companheiro de ideologia é que, para ser de direita, não é preciso defender os regimes de força. Impor “comemorações” pelo golpe de 64, como o governo pretende fazer, é debochar das vítimas de uma ditadura de 21 anos que prendeu, torturou, censurou, exilou, cassou e matou.

A democracia é que merece ser comemorada.

O Globo, 27/03/2019