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Na trilha de Herodes

 

Acho que todos os brasileiros estamos sentindo uma espécie de complexo de Herodes; co-responsáveis nesse morticínio espantoso de recém-nascidos do qual diariamente jornais, radio e TV dão notícia.


A epidemia (será mesmo epidemia?) ocorre nos locais mais distantes uns dos outros, como Boa Vista em Roraima, Fortaleza, Vitória, Niterói, etc. Os recém-nascidos morrem por infecção hospitalar, explica-se. A capacidade dos hospitais infantis é excedida de longe e não há tempo para higienizar os berços entre um e outro ocupante.


Ontem me dizia um velho cético que o mal é que nascem crianças demais no Brasil e no mundo. Crianças demais para recursos cada vez menores, pois que as crianças que escaparem de morrer de infecção hospitalar morrem mesmo em casa, mal paridas e maltratadas.


Todo criador de animais reduz o rebanho quando verifica que não dispõe de alimentos suficientes para os sustentar. O homem, não. Aliás, quero dizer, a gente pobre, porque os ricos têm os seus meios de reduzir a prole: ninguém vê um miliardário deixar 10, 12 filhos: "Um casalzinho ou, máximo, três crianças", diz a madame num suspiro. "Imagine a dificuldade que já é arranjar três babás!"


Os animais irracionais, como já foi dito, sabem como reduzir a prole, de acordo com os seus recursos naturais. O homem, animal racional, não o sabe. A causa principal nos países mais pobres é a religiosidade. As igrejas, por inegáveis motivos, têm mais força sobre os pobres do que sobre os ricos - não me atrevo a discutir aqui esses motivos que levam quase todas as confissões cristãs a condenar os anticoncepcionais. O mais alegado é que o ato do amor não deve ser gratuito, pura luxúria; é destinado a dar frutos; para isso o Senhor o concebeu e o permite. E como exigir isso seria exigir o impossível, os casais mais renitentes, ou se amam em liberdade e no dia da confissão acusam-se do pecado; ou simplesmente deixam de lado a abstenção, como obsoleta.


No interior do Brasil, por exemplo, a reprodução humana se faz como a dos pássaros ou dos sagüis. Os caboclos nem compreendem bem os sermões dos pastores, com suas palavras difíceis, ou não os freqüentam. (Cada vez diminui mais o número do clero católico no nosso interior. São substituídos pela invasão pregadora dos "crentes" ou "protestantes", que têm posições diversas a respeito de controle de natalidade, contra ou a favor.


Mas mesmo um casal que sente a necessidade de limitar os filhos não tem como o fazer. O anticoncepcional mais conhecido por eles, talvez o único, é a pílula, cujo preço exorbitante é inacessível para os seus recursos. Toda mulher sertaneja, com mais de quatro ou cinco filhos, já tem noção de que existe a laqueação das trompas, e sonha em realizá-la, mas tanto a lei dos homens com a de Deus a proíbem. Conheço um hospital mantido por religiosos (que aliás presta preciosos serviços à comunidade) que, durante os partos, deixa sempre uma freira acompanhando os movimentos do médico parteiro, vigiando se ele vai executar a atadura (que a parturiente lhe suplicou fizesse) alegando: "O senhor bispo proíbe que se faça isso aqui..."


Que fazer então? A rede hospitalar do País, é fácil ver nas estatísticas, é dolorosamente insuficiente para atender à população adulta, quanto mais os berçários, sobrecarregados de bebês, pondo-se até de dois num berço único...


Certa vez consegui de uma instituição americana o fornecimento gratuito de pílulas para as mulheres da nossa região. Em poucos meses inscreveram-se 90 mulheres e era um alívio vê-las menos sobrecarregadas de crianças, na barriga ou escanchadas nos quadris. Mas aí uma autoridade eclesiástica da cidade de onde provinham as pílulas soube do fato e imediatamente conseguiu sua proibição; ainda neste mês, uma das antigas freguesas das nossas pílulas morreu de parto, junto com a criança, ao dar à luz o sétimo filho - e eram apenas sete por causa da bendita interrupção daqueles três anos...


A questão é de dinheiro, de cultura, de governo, de política? Não se sabe. Enquanto isso, continuam todos como o velho Herodes, matando criancinhas com poucos dias de vida, como se já não bastasse as que morrem pelas outras causas, que também vitimam os adultos.


 


Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 13/07/2002

Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em, 13/07/2002