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Mudando de profissão

 

A peça “Brasileiro, profissão esperança”, escrita por Paulo Pontes, foi um dos mais importantes espetáculos montados na década de 70 como um painel nostálgico dos “anos dourados”, pré-golpe militar. Interpretado ou dirigido por Bibi Ferreira, houve várias encenações e casas lotadas durante meses, o que dá a medida de como o público se identificava com a noção expressa no título. Hoje, o brasileiro, desencantado, mudou de profissão. É o que revela a mais recente pesquisa do Ibope, em que quase metade dos entrevistados se disse pessimista quanto ao futuro e apenas 24% se declararam otimistas.

Não faltam razões. O que se oferece agora ao povo é um país — desculpem o mau gosto da imagem — com as vísceras à mostra, purgando, cheirando mal e dando nojo. Os jornais têm descrito, e a televisão mostrado diariamente, em capítulos, como se chegou a esse ponto de degradação, ou seja, como uma empreiteira dominou a política durante anos, comprando com dinheiro sujo importantes membros dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. O relato dessas obscenas transações pela própria voz dos corruptores tem sido um inacreditável desfile de cinismo, hipocrisia, acinte e afronta aos valores republicamos e à moral pública.

Uma novela de costumes que usasse a fala dos delatores da Odebrecht soaria inverossímil. Nenhuma ficção superaria essa realidade. A naturalidade com que relatam seus feitos é como se não fossem a outra face da corrupção, tão criminosa quanto a dos corrompidos. É bem verdade que eles têm como álibi o fato de que não assediavam, eram assediados com pedidos de propinas e propostas de outros negócios escusos, como fraudes em licitação. Os citados têm apresentado um coro repetitivo e semelhante de negações.

É difícil estabelecer uma hierarquia do que mais estarrece nesses escândalos, além do vulto do dinheiro recebido pelos envolvidos, numa escala de fazer inveja a qualquer país rico. O destaque vai para o protagonista da série, o dono da Odebrecht, uma espécie de poderoso chefão, cujo desempenho jocoso mistura deboche e gozação. A intimidade promíscua que ele estabeleceu com autoridades governamentais se manifesta em cenas como a descrita por ele, quando reclamou do então presidente Lula do excesso de pedidos: “Seu pessoal está com a goela muito aberta. Estão passando de jacaré a crocodilo”. Impressiona também a eficiência do Departamento de Propinas da empreiteira, que chega a requintes de calcular que uma mochila é capaz de carregar R$ 3 milhões, uma providência indispensável, porque “doações” eram feitas em dinheiro vivo. 

Como ainda faltam muitas delações, anuncia-se que dias piores virão.

O Globo, 19/04/2017