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Mudanças perigosas

 

Mais cedo do que pensava, o Supremo Tribunal Federal (STF) se depara com sua própria contradição ao ter que julgar os acusados de mandantes do assassinato de Marielle Franco com base muito mais em uma delação premiada do que em provas que a confirmem.

Até hoje o ex-juiz Sérgio Moro é criticado por ter declarado que tinha “convicção” de que o então ex-presidente Lula era culpado, como se admitisse não ter provas contra ele. Esse parece ser o caso das acusações aos irmãos Brazão e ao delegado Rivaldo Barbosa, pois a investigação da Polícia Federal não traz provas que corroborem a delação do matador de aluguel Ronnie Lessa, embora quem leia o relatório tenha todas as informações para se convencer de que são mesmo os autores intelectuais do crime.

A questão é que as conclusões da investigação estão sendo contestadas, e a escolha da jurisdição do julgamento também, pela oposição e por advogados independentes. Pelas regras atuais, nenhum dos três acusados deveriam estar sendo julgados no STF. Já temos exemplos do que pode acontecer se e quando os ventos políticos mudarem.

A revisão dos critérios para o foro privilegiado faz parte dessas contradições internas do Supremo. Embora o ministro Gilmar Mendes tenha defendido a revisão antes do caso Marielle ter chegado ao STF, já lá estava o inquérito sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro, com a polêmica decisão de julgar todos os envolvidos na instância mais alta do Judiciário.

O mais razoável seria julgar os líderes da intentona no Supremo, deixando para as instâncias inferiores os envolvidos nas depredações da Praça dos Três Poderes. Como o ex-presidente Bolsonaro está envolvido nessa tentativa de golpe desde o início de seu governo, está implicado em crime a ser julgado pelo Supremo, sem que a lei atual precisasse ser alterada.

Desde o julgamento do mensalão o Supremo, porém, definiu que, em casos como aquele, o julgamento seria conjunto, pois importava julgar o caso como um todo, e não a ação individual de cada um dos acusados. O mesmo critério está sendo adotado agora no julgamento da tentativa de golpe de 8/1.

Ao decidir, seis anos atrás, restringir a crimes cometidos no cargo e em função dele o foro privilegiado, por iniciativa do hoje seu presidente, ministro Luis Roberto Barroso, o Supremo deu um passo correto, a meu ver, para não banalizar esse instrumento, que originalmente visa proteger a função exercida, não a pessoa que o exerce.

Neste momento, a ampliação da abrangência do foro privilegiado para todos os que já tiveram cargo relevante quando crimes foram cometidos garante a permanência no Supremo de todos os inquéritos que envolvam autoridades com ou sem mandato. Dá a impressão, como disse um deputado, que o Supremo quer manter os deputados federais sob sua jurisdição. Não é totalmente inverossímil essa impressão, pois o que dá poder político ao Supremo é justamente essa atuação criminal, que se sobrepõe na maioria das vezes à atuação constitucional de suas excelências.

Nesse caso, o que parece mais provável é que queiram manter com o relator ministro Alexandre de Moraes todos os inquéritos que estão sob seu crivo, de teor político relevante. Assim como mudaram o entendimento sobre foro privilegiado apenas seis anos depois da decisão anterior, também mudaram quanto ao trânsito em julgado.

O plenário do Supremo rejeitou inúmeros habeas corpus a favor de Lula, e negou várias tentativas de sua defesa no sentido de que Curitiba não era a jurisdição adequada para o julgamento. Num belo dia, mudaram de posição quanto à prisão em segunda instância e quanto à jurisdição adequada, mudando também o rumo da história recente.

Correr o risco de ver, em poucos anos, novas alterações, de acordo com os ventos políticos, não é bom para a estabilidade da democracia.

 

 

 

 

 

 

O globo, 31/03/2024