As palavras , como tudo na vida, sofrem a ação inexorável do tempo. Nascem, amadurecem, têm seu instante de esplendor e depois morrem. Ao contrário dos seres vivos, ficam insepultas. Veja-se a palavra "sevandija". No século 19, não se escrevia um artigo, uma catilinária, sem que ela fosse empregada. Hoje, ninguém mais se lembra do que é. Caiu no túmulo das palavras mortas. Até ficou um título de saber conhecer palavras arcaicas. Luís Carlos Bello Parga, que foi senador e um dos mais cultos colegas que tivemos naquela Casa, era respeitado porque "sabia línguas mortas" e gastava seu lazer em traduzir inglês arcaico.
Agora, vejo a notícia de um manual de um partido político cuja finalidade é fugir como o diabo da cruz da palavra "neoliberal". Neoliberal passou a ser insulto, e ninguém quer ser. Já houve um tempo em que era moderno ser neoliberal. Hoje é anátema.
Niemeyer, outro dia, em artigo bem a seu jeito, enfrentou a horda púnica e proclamou: "Sou stalinista". Na autoridade dos seus 96 anos, não tem medo das palavras. Mas acrescentou, numa síntese bem esclarecedora, que as idéias políticas destes dois últimos séculos estavam balizadas com Karl Marx e Adam Smith. Este, o liberal, o do mercado senhor de todas as soluções; aquele, o utópico, senhor de todas as esperanças. Chamar alguém de liberal, há alguns anos, era chamá-lo de dinossauro, troglodita e filho da mãe. Hoje, marxista é a mesma coisa. Então nasceu o "neo" como escudo e vacina contra todas as censuras.
O Consenso de Washington foi o código neoliberal, a lei de Moisés a ser seguida por todos. O negócio fez água e a tal ressurreição da humanidade pelo neoliberalismo foi colocada sob inquisição.
Daí a aversão ao neoliberalismo. Quem foi diz que não é; quem é diz que não foi. O que se foi, realmente, foi o neoliberalismo.
Eu, por meu lado, nunca fui nessa conversa. Com certo conservadorismo, fiquei ao lado do que era avanço para a minha geração: o estado de bem-estar social, este que o neoliberalismo destruiu. A modernidade era a velharia e, hoje, a velharia passou a ser modernidade. "Neoliberal" ou "neo-social" são, assim, palavras que estão no caminho do abandono.
"Liberal" tem acepção diferente em cada lugar. Nos Estados Unidos, ser liberal é assim como radical de esquerda aqui. Uma eleitora do Partido Republicano certa vez me disse: "Roosevelt? Liberal! Comunista!".
Num seminário da Abdib, pediram-me que falasse sobre desenvolvimento sustentável. Comecei por dizer que assisti, durante a minha vida, ao nascimento da palavra "desenvolvimento", na década de 50. Foi Juscelino quem a popularizou. Antes era "progresso". Agora, a moda é "desenvolvimento" com o adjetivo "sustentável". Essa expressão passou a ser a "big word".
Ser atual e moderno é dizer que "temos de aprofundar a discussão, lutar pelo desenvolvimento sustentável e nada de neoliberalismo".
Fico de pé-atrás com esse jogo de palavras. Vivaldi, meu saudoso e velho amigo presidente da Academia de Letras de Minas Gerais, sempre dizia que tinha horror à palavra "inclusive".
Eu disse que também detestava muitas palavras e expressões. Mas a pior de todas é a horrorosa "mister se torna" neoliberal.
Folha de São Paulo (São Paulo - SP) 11/06/2004