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Minha redação do Enem

 

Se eu fosse um dos 4 milhões de jovens que fizeram o Enem este ano, teria exultado com o tema escolhido para a redação, “A democratização do acesso ao cinema no Brasil”. Tem a ver com minha atividade profissional. Mas também, ao contrário do que muita gente pensa, deu à rapaziada a oportunidade de falar, como em redações de anos anteriores, do horror que foi a ditadura que começou em 1964 e durou 21 anos.

Começaria minha redação tecendo oportunos comentários sobre o comportamento do atual governo. Nosso presidente anuncia filtros para impedir a produção de filmes indesejáveis, mas não me lembro de ter havido essa censura prévia durante a ditadura. Nossos filmes produzidos com o apoio da Embrafilme, subordinada ao Ministério da Educação e Cultura, eram cortados ou interditados, depois de prontos, pelo Ministério da Justiça, do qual fazia parte o Serviço de Censura. Antes de serem realizados e finalizados, nunca ouvi dizer.

Esse sistema de filtros, com que o presidente nos ameaça, só existe ou existiu em regimes como os da Alemanha Nazista, da União Soviética, da Espanha de Franco e semelhantes. Talvez vigore em países como Turquia, Coreia do Norte, Hungria, Venezuela e mais onde não haja liberdade para se dizer o que se pensa. A meta é eliminar o perigo de ideias que não sejam as de quem está no poder.

Em seguida, em dúvida sobre a intenção precisa da expressão “democratização do acesso”, me disporia a escrever, em minha redação, sobre quem faz e quem vê os filmes, as duas pontas indispensáveis do espetáculo cinematográfico.

A maior parte de meus supostos colegas de Enem tem raramente acesso às salas de cinema. No Brasil de hoje, o cinema é uma das diversões mais caras, proibitiva para a grande maioria da população. Nosso ministro da Economia disse, outro dia, que “os ricos capitalizam seus recursos, enquanto os pobres consomem tudo”. Esse “tudo” que os pobres consomem, segundo o IBGE, tem que caber num rendimento per capita de R$ 414. Como essa é uma cifra média, 50% não devem ganhar nem R$ 414 por mês. O próprio IBGE nos diz que 14 milhões de brasileiros vivem com menos de R$ 145 mensais.

Nosso preço do ingresso faz do cinema uma diversão fina de shopping centers, uma das mais relativamente dispendiosas do mundo. Se somarmos a ele a indispensável pipoca superfaturada e a Coca-Cola mais cara do continente, não dá para um trabalhador de salário mínimo ir ver um filme toda semana, com mulher e filhos. Ele reserva seu pouco dinheiro para ver, em dia de festa, numa tela enorme e com som espantoso, os “Vingadores” ou a “Malévola” do ano. O resto ele vê na televisão, de graça e de pijama, quando chega em casa do trabalho árduo do dia.

Ainda assim, os filmes brasileiros vendem cerca de 25 milhões de ingressos por ano. E, na televisão, como agora no streaming das OTTs, nossos filmes batem recordes de audiência, sempre bem mais do que renderam nas salas e, muitas vezes, superiores à dos blockbusters de Hollywood.

Diria, na redação do Enem, que o público brasileiro, vítima de sua miséria e da ganância dos outros, não tem acesso democrático ao cinema. Pena. Não tenho nada contra os filmes na TV. Mas vamos, no tempo, perder a densidade do espetáculo coletivo, seu congraçamento, a troca social e humana do fenômeno cinematográfico. Ricos e pobres, cada um de nós ficará em seu canto, falando sozinho do filme que vê da cama, sem ter com quem compartilhar ideias e sentimentos.

Escreveria, por fim, que nosso sonho de acesso democrático à fabricação de um cinema brasileiro vigoroso está ameaçado pelas políticas públicas da cultura. Produzimos hoje uns 150 filmes por ano, recorde nacional e número expressivo na América Latina, com uma diversidade tão extensa quanto a multiplicidade do país. Filmes premiados pelo mundo, que atraem significativamente nosso público, como “Bacurau” ou “A vida invisível”. Assim como filmes francamente populares, como as franquias de “Minha mãe é uma peça” ou “De pernas para o ar”. Mas isso não sensibiliza os burocratas oficiais da cultura, que só se interessam em festejar e premiar os insensatos, que odeiam nossas criações por implicância ideológica e ofendem ridiculamente nossas estrelas eternas.

A cultura deve existir para nos dizer quem somos e o que queremos ser. É assim que eu terminaria minha redação do Enem.

O Globo, 10/11/2019