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Minha arma inocente

 

Diante da atual onda armamentista, me lembrei de que a última vez que me convocaram a pegar em armas foi há 55 anos, em Brasília, onde estava para lecionar na UnB. Era 1º de abril de 1964, dia em que estourou o golpe militar. A exemplo de vários colegas, compareci à fila de alistamento disposto a resistir.

“Qual a arma que você sabe manejar?”

Como ninguém me preparou para essa pergunta, fiquei paralisado.

“Qual a arma que eu sei manejar?” “É. Qual a arma que você sabe manejar?”

Eu continuava ali, parado, sem saber o que responder. Tive vontade de dizer que era bom em primeiros socorros, mas fiquei com vergonha. Enfermagem na época era tarefa para mulher. Enquanto isso, a fila não andava, e eu era pressionado pelos que vinham atrás: “Anda logo ou vai embora”, gritavam. Poucas vezes me vi em situação tão embaraçosa. Acho que foi o que atiçou minha memória.

“Fuzil Mauser 1908”, respondi, de repente, com convicção.

“Fuzil Mauser 1908?”

Agora era o responsável pelo recrutamento quem perguntava com um risinho ao ouvir a data.

“É, qual o problema?”, desafiei, com a súbita confiança que me deu a recordação do Tiro de Guerra, o TG-24, onde prestei o serviço militar nos anos 50.

Para obter o certificado de reservista de segunda categoria, era preciso vencer algumas provas, inclusive desmontar e montar de olhos vendados, em poucos segundos, o famoso fuzil Mauser 1908.

Como não queria ser chamado de “batráquio” pelo sargento, virei “caxias”. Sabia de cor tudo o que era preciso para ser combatente básico da Força Territorial. Virava o ferrolho com rapidez invejável e tinha tão boa pontaria que nunca errei o alvo, até porque os tiros eram de festim.

Agora, estimulado pelo novo decreto, cheguei a pensar em comprar um velho Mauser. Mas onde guardá-lo para não ficar ao alcance dos netos, se ele não cabe num cofre?

Desisti. Embora o ministro Onyx tenha dito que o perigo é o mesmo, preferi o liquidificador. Afinal, ele nunca atentou contra a vida de alguém.

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Bolsonaro não precisa de oposição para lhe dar dor de cabeça. Os filhos bastam.

O Globo, 23/01/2019