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Memória nacional : bens imateriais

 

Converso com minha amiga Nélida Piñon e confesso que tenho vontade de escrever um artigo sobre o nosso patrimônio imaterial. Dando como exemplo, lembro a importância do samba para a cultura brasileira. Ela argumenta que viu no Marrocos uma praça inesquecível, toda ela povoada por bens imateriais, como faquires, lambedores de fogo, palhaços, dentistas - uma soma incrível de pessoas fora do comum que dão o tom da imaterialidade àquele local abençoado pela Unesco. O poeta Alberto da Costa e Silva confirma que conhece o local.


A proteção de bens imateriais, ou seja, aqueles que não são físicos, como prédios e esculturas, tem sido defendida há muitos anos no Brasil e atende à preocupação de entidades internacionais, que têm se dedicado com afinco ao tema. A Unesco, por exemplo, através de sua Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 17 de outubro de 2003, considera incluídas nesta categoria ''as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante do seu patrimônio cultural''.


Como é sabido, esses bens são transmitidos de geração em geração, e fazem parte intrínseca da história das comunidades. Sua valorização e conseqüente preservação, além de ser fundamental para a diversidade cultural, também colabora para a auto-estima dos cidadãos.


Em 1936, quando, a pedido de Gustavo Capanema, produzia o texto do anteprojeto que criaria o então Serviço de Proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), o escritor Mário de Andrade já falava da importância de se preservar as manifestações culturais. Por essa iniciativa, ele é considerado um dos precursores do tema no país. As suas preocupações com o patrimônio imaterial o levaram a viajar pelo país e realizar uma profunda pesquisa musical.


Com base no preceito constitucional, algumas manifestações não-materiais já estariam devidamente protegidas. Mas, na verdade, falta a regulamentação, para que se saiba realmente o que deve ser amparado.


Em 1996, em função das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, também houve manifestação do governo federal em relação ao tema, quando foi criado, através de decreto, o Museu Aberto do Descobrimento. O que se tentou foi transformar no maior museu do mundo a área do avistamento (Monte Pascoal, na Bahia, o primeiro local visto no Brasil pelos portugueses da fragata de Pedro Álvares Cabral). O projeto, amparado por um decreto assinado em 22 de abril de 1966, era ambicioso: rios, povos indígenas e paisagens fariam a composição de um espaço que abrigaria toda a costa do descobrimento, uma área de 1,2 mil quilômetros quadrados. A idéia não vingou.


No dia 4 de agosto de 2000, o então presidente Fernando Henrique Cardoso assinou o decreto 3.551, instituindo a proteção legal para patrimônios não-materiais, que seriam os elementos do nosso folclore, as festas, as danças e as diversas manifestações culturais e religiosas. Pelo decreto, o bem não seria propriamente tombado, mas sim registrado em quatro livros diferentes: dos Saberes, de Celebrações, das Formas de expressão e de Lugares. Todo o processo deveria passar pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e pelos órgãos oficiais de Cultura, como o Ministério da Cultura, suas instituições, as secretarias de Estado e Município, sociedades e associações civis. O estágio final previsto é o exame pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, quando então o bem recebe o título de Patrimônio Cultural do Brasil. Quatro projetos-piloto estavam sendo desenvolvidos, nas áreas de saberes (o trabalho das paneleiras de Goiabeiras, no Espírito Santo), celebrações (Círio de Nazaré), lugares (rota sagrada no Rio Negro) e formas de expressão (a pintura corporal dos índios Wajãpi, do Amapá), que serviriam de parâmetro para futuros tombamentos.


O tema esteve em pauta recentemente através de artigo do acadêmico José Sarney, Lampião e o Iphan, publicado no dia 18 de junho deste ano na grande imprensa. No texto, ele informa que o Iphan foi criado em 1935, por Rodrigo Mello Franco de Andrade, e teve entre seus quadros figuras notáveis como Lucio Costa, Joaquim Cardoso, Oscar Niemeyer e Carlos Drummond de Andrade. Ao falar da importância da festa de São João, uma celebração que segundo ele merece ser preservada, o ex-presidente da República lembrou que o Iphan tem apenas quatro funcionários para cuidar dos registros de bens imateriais. E o pior: a entidade encontra-se há 20 anos sem concurso público.


O ministro da Cultura, Gilberto Gil, sugeriu o tombamento do samba como Patrimônio Cultural da Humanidade. Na ocasião, o Iphan divulgou uma lista com 13 manifestações artísticas, religiosas e gastronômicas que estão sendo analisadas para se tornarem patrimônios culturais do Brasil.


Já é hora, pois, de pensar seriamente no assunto. O caminho é longo, mas há que se perseverar na sua condução.




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 21/09/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 21/09/2005