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Lula com e sem asteriscos

 

Ouvindo os áudios e lendo as transcrições, me lembrei do recurso inventado pelo ‘Pasquim’ para driblar a censura e evitar inconveniências vocabulares.

Já que quase tudo foi dito e publicado sobre o conteúdo das gravações de Lula, cujos efeitos agitaram ainda mais o ambiente político, vou me limitar à forma, isto é, à incontinência verbal que atentou contra o bom gosto e os bons modos de linguagem. Ouvindo os áudios e lendo as transcrições, me lembrei do recurso inventado pelo “Pasquim” para driblar a censura e evitar inconveniências vocabulares: o asterisco (*). A famosa entrevista da atriz Leila Diniz, em 1969, teve enorme repercussão, menos pelo que foi mostrado e mais pelo que foi sugerido. O sinal gráfico substituía os palavrões, cabendo ao leitor usar a imaginação e adivinhar o que vinha encoberto, e isso era mais delicado do que a revelação com todas as letras. No registro do desabafo telefônico de Lula para Dilma, por exemplo, não se reproduziria as duas letras e sim: “Eles que enfiem no (*) o processo”. Ou então: “... que enfiem no c(*).” Afinal, a liturgia do cargo exige um mínimo de respeito.

Para Leila, foram usados mais de 70 asteriscos. Lula não chegou a tanto, mas, mesmo assim, foi um número excessivo para rápidos diálogos muito pouco republicanos e nada edificantes. A imprensa se dividiu quanto à maneira de tratar o problema. Como um palavrão ouvido é muito mais forte do que lido, a televisão usou um sinal sonoro para apagar as expressões chulas. Já os impressos preferiram mostrar Lula sem retoque — sem asteriscos. De minha parte, confesso que, menos por recato ou pudicícia, e mais por gosto estético, ainda não me acostumei com esse exagerado liberou geral atribuído à influência do vale-tudo da desbocada internet. 

Se tivesse que transcrever aqui o telefonema do ex-presidente para o ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, eu usaria dois asteriscos: um “filhos da p(*)” e um “que po(*) é essa?”. A conversa com o deputado federal Wadih Damous exigiria quatro: “filho da p(*)”, “m(*)” e duas vezes “fo(*)-se”. O papo com o deputado José Guimarães, líder do governo na Câmara, merece três: “Cara (*), “po(*) e f (*)dendo”. Com Rui Falcão, presidente do PT: “eu quero que se fo(*). E o nosso prefeito, hein, competindo com Lula em palavrões. Ele desculpou-se publicamente alegando que foram “brincadeiras de mau gosto”. Como ele mesmo diria, “p(*) que me pariu”, que brincadeiras.

Quanto a Lula, se o ser humano revela o pensamento pela linguagem, suas falas com todas as letras, sem asteriscos, mostram o que se passa em sua cabeça. Quando o tema parecia esgotado, eis que surge Dona Marisa ao telefone com o filho Lulinha, dizendo, depois de um panelaço: “Eles que enfiem as panelas no (*)”.

Deve ser um lugar-comum familiar.

O Globo, 19/03/2016