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Livros e cidadania

 

Durante a campanha presidencial do ano passado, houve um momento em que Bolsonaro, candidato à reeleição, deu um tiro no pé ao fazer uma ameaça que, se serviu para reforçar os que já o apoiavam, deu força contrária àqueles que estavam em dúvida.  Disse ele:

— Não esqueça que o outro cara, o de nove dedos, já falou que vai acabar com o armamento no Brasil. Vai recolher as armas, clube de tiro vai virar biblioteca, como se ele fosse algum exemplo.

A dicotomia armas versus livros foi um prato cheio para a campanha de Lula, que se colocou como candidato humanista contra um predador. “Mais livros, menos armas” foi um bom slogan político. Ao contrário de promessas eleitorais que não saem do papel, o presidente Lula ontem deu um passo importante na valorização dos livros, mesmo que não tenha transformado clubes de tiros em bibliotecas.

O acordo que a Academia Brasileira de Letras (ABL) assinou com o Ministério das Cidades, na presença do presidente Lula no Palácio do Planalto, tem o objetivo de assessorar o governo na construção de um acervo de títulos literários, provenientes de doações recebidas pela própria ABL e de outros parceiros públicos e privados, para ser utilizados na implementação de salas de biblioteca ou leitura nos novos empreendimentos do programa Minha Casa, Minha Vida.

A preocupação com a funcionalidade das bibliotecas dos conjuntos habitacionais é tamanha que o Ministério da Educação e a própria ABL serão chamados a opinar até nos modelos de biblioteca, para estimular a leitura. Também os diversos programas de incentivo ao livro — Programa Nacional do Livro Didático, Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e outros — serão reativados para povoar as bibliotecas das novas construções do Minha Casa, Minha Vida.

O sentido de colocar bibliotecas nas casas populares vai além do estímulo à própria leitura, indica uma preocupação com a inclusão dos moradores na cidadania completa, como defendeu o ministro das Cidades, Jader Filho. O próprio presidente Lula disse em seu discurso: “Agora que a Academia Brasileira de Letras resolveu nos ajudar no Novo Minha Casa, Minha Vida, para fazer as bibliotecas, é tudo que a gente precisa para melhorar o programa. Moradia digna e cultura. Até porque precisamos ensinar o povo brasileiro a gostar de ler. Se, em cada conjunto habitacional, fizermos uma pequena biblioteca, quantos Guimarães Rosa e Jorge Amado vão surgir nesse país?”, perguntou o presidente.

Raciocínio semelhante havia sido levantado pelo acadêmico e filósofo Eduardo Giannetti, em palestra na ABL sobre a desigualdade brasileira, que, como ressaltou, “aparece em todos os indicadores econômicos e sociais, perpassa muitas dimensões da vida”. O importante é garantir a paridade nas condições iniciais de vida, diz ele. Para Giannetti, “não podemos mais tolerar no Brasil que as condições iniciais de vida sejam tão desiguais — em relação à educação, à saúde, a todas as oportunidades que se oferecem”.

Giannetti ressaltou que o “mérito dessa ideia da equidade é permitir que aflorem todos os talentos, competências e capacidades”. Para reforçar seu ponto de vista, de que a desigualdade impede o desenvolvimento do povo brasileiro, Giannetti acrescentou:

— Me pergunto quantos Machados de Assis analfabetos, quantos Gilbertos Gil subnutridos estão por aí fazendo o que podem para viver um dia de cada vez, porque não tiveram minimamente as condições de desenvolver seu potencial humano.

O desenvolvimento humano também foi a base do discurso de improviso do presidente Lula ontem no lançamento do programa, em que conclamou ao diálogo, e a pedra de toque da ideia de dar aos usuários dos programas sociais do governo uma abertura para novos mundos por meio da literatura.

O Globo, 23/11/2023