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Infância de Poeta

 

O mundo como espanto e admiração é a nossa primeira experiência com o ambiente que nos cerca. A voz da mãe, tão viva e contundente na memória ilumina partes secretas do labirinto de que somos feitos. Uma fina membrana nos separa da vida. Agrega e separa, como um sonho fugaz.

A infância profunda é um naufrágio delicado. O barco segue oculto no seio do mar primordial. Boiam alguns fragmentos, ideias rarefeitas, sentimentos em estado selvagem, antes da organização das palavras, da forma de entender o mar e de saber quem somos.

É certo que a infância não passa nunca, desafiadora, como um velho álbum, que, de quando em quando, é preciso rever, com tantas pessoas nas fotos, cujo nome ignoramos, se estão vivos ou não. Boa parte deixou de ser. A infância é um álbum povoado de fantasmas, para os adultos, cujas fotos manuseiam, emocionados ou indiferentes. 

Mas a infância do poeta não passa. A poesia é o estado permanente daquele menino impossível, de Jorge de Lima, cercado de brinquedos ou versos cheios de mistério e luz. O brincar como ensaio do que estávamos construindo para nós.

Desenho a locação das nuvens, condensadas ao longo de zonas celestes, distantes para os olhos de agora e de ontem, que desde cedo me deslumbram.

Minha infância incerta no mês de julho no Rio, com seus dias breves, feridos por uma espessa camada de melancolia, ainda mais sentida nos subúrbios da Leopoldina, sinuosa, como a linha de trem que avança nas entranhas fluminenses.

Como alcançar as feridas da memória, que chego apenas a sentir, quase impalpável, dor que a tudo se mostra rebelde e insubmissa nos primeiros anos?

Sob o líquido coral de nuvens, passa um menino, perdido, com seu cãozinho branco nos quintais. Seus olhos fosfatados de inocência trazem largas parcelas de futuro, como se estivesse ao abrigo dos deuses ferozes do mundo, dentro de uma esfera de pura vertigem. Inventa e sonha a linha do horizonte. Talvez fosse incluir um canário amarelo, com a gaiola, na parte dos fundos da casa, na pequena e infinita varanda, um cachorrinho branco, saltitante. Uma casa verde, cheia de bichos como a Arca de Noé.

No fim do mundo, posso apostar, “alguma coisa escapa do naufrágio das ilusões” e verei todos os meus animais.  

Uma narrativa ou memória sem quantidade, feita de sentimentos dispersos é quanto me resta. Mas, e se tudo não passa de mera intuição, vida provisória, potência que se afoga no vazio das palavras? Será apenas um salto no silêncio, a volta para a infância, algo que se nutre do nada em que se apoia e brilha, fugaz como um raio: sentimento que de súbito se exaure, na vida adulta, como num piscar de olhos?

Ao longe, e a muitos quintais de distância, reconheço uma farmácia. Não lembro como se chamava, onde se lia, em letras redondas, na vitrine, “agradecemos a preferência, volte sempre.

Tão obscura me parece a relação do menino com as nuvens e os remédios da farmácia. Um fio da memória esgarçado em muitos pontos que deviam, mas não sabem, fazer um único nó.

Porque, a essa altura, o cachorro branco fugiu da coleira e perdeu-se. O menino deixou o quintal em busca de outros, mais incertos. A farmácia baixou as portas e não sei onde buscar novos remédios. Como dizer uma história sem progressão? Fechada para o mundo como se a névoa lhe impedisse o passado.

Essa rememoração tem algo do canário que a tanto mundo não se atreve. Para Kafka, uma gaiola saiu para buscar um pássaro. Amarelo talvez, como aquele do menino, cujo canto dissipou-se na partitura dos dias.

Indago tão-somente a densidade das nuvens e a rarefação da história, que se passa no mês de julho, nos subúrbios do Rio e que reúne, sem motivos claros, a infância de um menino, o quintal onde armou alguns sonhos e as portas baixas da farmácia.

Um físico pergunta: Por que não nos lembramos do futuro?

O Globo, 31/07/2018