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A imigração e a cultura brasileira

 

Ao estudar a chegada de grande leva de imigrantes às regiões sudeste e sul do Brasil se tem, geralmente, dado maior importância a seu aspecto econômico, sobretudo em São Paulo, com a substituição súbita de mão de obra escrava pela de trabalhadores europeus, mas não foi menor sua influência do ponto de vista psicológico ou espiritual.


Como Joaquim Nabuco o advertira, Gilberto Freire veio confirmar, a escravidão deixou uma grave herança, até hoje não de todo superada, quando a falta de providências adequadas determinou o abandono em massa do campo pelos negros libertos, arrancando-os de lá e provocando sua precipitada fuga para as cidades. Por outro lado, como observa Maria Teresa Schorer Petrone, não foi fácil a integração dos imigrantes italianos nas fazendas de café, tendo sido freqüentes os atritos com fazendeiros de mentalidade ainda escravocrata, infensos a cumprir as cláusulas dos contratos que asseguravam salários justos, além de aproveitamento das leiras dos cafezais para o plantio indispensável à sua subsistência. As porcentagens aventadas nas colheitas foram também motivos constantes de conflitos, determinando a transferência de imigrantes de umas para outras propriedades agrícolas, à procura de maiores lucros.


É preciso, com efeito, ter sempre presente que os imigrantes, mesmo quando oriundos de terras pouco afeitas à produção, como o sul da Itália, chegaram ao Brasil com outro espírito e disposição, com o anseio de fazer fortuna ou de, pelo menos ter terra própria. Como advertia Antônio Piccarolo, professor italiano de formação socialista moderada e que foi pioneiro no estudo do significado cultural da imigração, este “é problema de liberdade”, tal como escrevia em seu livro L'Emigrazione italiana, publicado em 1911. Em outra obra anterior, 1908, significativamente intitulada Uma rivoluzione economica - lá propietà fondiaria degli italiani nello stato di San Paulo, o mesmo autor punha em realce os aspectos sociais e políticos da imigração, salientando a mudança de mentalidade no plano social e político.


Na verdade o que se processava era a recuperação do valor do trabalho, livrando-o da mancha que lhe inculcara a escravidão, fato que se estendia também à vida urbana, com a valorização dos artífices ou artesãos. Daí os primeiros movimentos reivindicatórios de salários que surgiram na capital paulista no século XIX e no início do século passado, sobre a denominação genérica de anarquismo, palavra que entre nós adquiriu o sentido de defesa social, e não de negação do poder constituído.


O certo é que era posta em novos termos a relação trabalho-capital, dando nascimento a novas organizações do trabalho, como o colonato, que se implantou nas fazendas paulistas, tornando-se o imigrante meeiro do proprietário da terra, às vezes até mesmo com o direito à produção de leite para consumo familiar. Ao lado disso não se pode olvidar a contribuição dos estrangeiros aos nossos usos e costumes, numa simbiose de grande significação, como o demonstra a alimentação predominante em São Paulo.


Note-se que o colonato se estendeu depois às plantações de cana e usinas de açúcar, tornando-se um dos fatores de seu progresso, até o dia em que o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), empenhado na proteção dos engenheiros do norte, sobre a longa direção de Barbosa Lima Sobrinho, o veio destruir, com a absurda equiparação dos colonos aos “fornecedores de cana” nordestinos, com intromissão estatal que os usineiros paulistas, muitos deles já descendentes de italianos, não puderam aceitar. Essa foi uma das causas remotas do surgimento de “cortadores de cana” sem terra.


Como se vê, a grande imigração influi poderosamente em nossas formas de vida e trabalho, inclusive no que se refere ao ensino, uma das declarações mais persistentes dos colonos em benefício de seus filhos. Ademais, a miscigenação alargou-se, ganhando novos elementos, até que se operasse, como se deu, a formação de uma sociedade plural, o imigrante não mais se distinguindo das cepas familiares tradicionais.


Outro fato relevante foi a disseminação da pequena propriedade, o que no sul do país ocorreu de maneira mais pronunciada, em virtude da salutar destinação das terras devolutas estaduais aos imigrantes para nelas instalarem sua produção familiar, o que determinou a localização uniforme de alemães e italianos em distintas partes do território, como aconteceu sobretudo no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina.


À margem, porém, da imensa influência de natureza econômica, há que destacar as relativas a formas de vida, com contribuições relevantes no domínio das ciências e das artes, com admirável intercâmbio de elementos culturais, inclusive no concernente ao modo de falar, à pronúncia que distingue as diversas regiões brasileiras, muito embora sem a constituição de dialetos, o que representa um dos fatores mais decisivos da unidade nacional.


Se lembrarmos a massa de população africana chegada ao Brasil no período colonial e no Império e, posteriormente as correntes imigratórias, provenientes de todas as partes do mundo, em edição à originária e fundante imigração portuguesa, e a vista do que aconteceu, como vimos, no nordeste e no sul, podemos afirmar que, em última análise, somos um país de imigração, que tem a caracterizá-lo um sentido constante de assimilação e conciliação, o que ocorre tanto no plano material como espiritual.


Parece que há receio de reconhecer esse fato, como se a identidade nacional só pudesse ser apontada a partir do já apontado cerne luso-afro-ameríndio, como se este já não representasse o resultado de uma poderosa miscigenação.


Talvez a minha opinião a um arcaico e superado nativismo, como o de Darcy Ribeiro, resulte do fato de ser descendente de antigas famílias portuguesas, como os Vieira da Rosa Góes, e de imigrantes italianos, como os Chiaradia e os Reale.


Acresce que, mais recentemente, populações do sul e do sudeste, em novo bandeirismo, foram fecundar as terras antes abandonadas do oeste, desde o rio São Francisco ao Amazonas, com grande número de descendentes imigrantes completando o quadro de sua influência, uma das mais poderosas na formação da cultura nacional.


O Estado de São Paulo - São Paulo - SP, 03/03/2001

O Estado de São Paulo - São Paulo - SP,, 03/03/2001