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Governo fantasma

 

A situação mais curiosa desse pastelão em que se transformou a sucessão presidencial da Venezuela é a do vice-presidente Nicolas Maduro, que a partir de hoje deixa de ter um cargo oficial, embora seja o sucessor escolhido pelo caudilho Chavez para substituí-lo em caso de necessidade. Acontece que na Venezuela de Chavez o vice é nomeado pelo presidente, e pode ser substituído a qualquer momento, como se fosse um ministro. Não aparece na chapa na eleição presidencial e na prática é mais um subordinado do presidente. Deve ser para evitar um acesso de ambição do companheiro escolhido.

Como Chavez teve sua posse adiada, não poderá assinar a formalização de Maduro como vice e teremos assim um governo em que ninguém detém o poder realmente: o presidente da Câmara Cabello não assumirá a presidência, e Maduro não é formalmente o vice-presidente. Em toda ditadura acontecem casos como esse, e uma hora a realidade trata de revelar os traços ditatoriais do governo que mantém a aparência democrática, como na Venezuela. No Brasil tivemos dois casos semelhantes.

Quando o general Arthur da Costa e Silva teve uma isquemia, deveria ter sido substituído por Pedro Aleixo, que havia sido nomeado vice para manter a aparência de democracia no país. Na hora da definição, quem assumiu mesmo o governo foi uma Junta Militar formada pelos ministros militares.

No caso de Tancredo Neves, que baixou hospital na véspera da posse, quem deveria ter assumido o governo era o presidente da Câmara, deputado Ulysses Guimarães, mas em vez dele assumiu a presidência o vice-presidente José Sarney. Pelo menos Sarney aparecia na chapa eleita indiretamente. Questionado por Pedro Simon sobre as razões que o fizeram aceitar a decisão tão discutível, Ulysses foi irônico: “Se o maior jurisconsulto do país disse que era o Sarney, quem sou eu para contestar?”. Ulysses referia-se não ao ministro Leitão de Abreu, chefe do Gabinete Civil, mas ao ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves, que foi quem interpretou a Constituição a favor de Sarney, que além do mais era seu amigo.

Situações assim revelam o caráter de um governo, e também daqueles que o apoiam. No Brasil, no caso de Costa e Silva tratava-se da manutenção do poder com os militares. No de Tancredo Neves, da transição para a democracia, e qualquer passo em falso poderia interromper a passagem do poder militar para o civil.

O próprio Tancredo temia que se não pudesse tomar posse o processo de transição fosse interrompido, e por isso recusou-se a se internar antes. A interpretação em favor de Sarney foi a saída mais viável, já que era tido como certo que os militares não aceitariam a posse de Ulysses Guimarães.

O próprio Sarney, que até recentemente presidia o PDS, o partido do regime militar, tinha a objeção de muitos militares por ter rompido com o governo e viabilizado a candidatura Tancredo Neves. Tanto que o general-presidente João Figueiredo recusou-se a passar a faixa presidencial a ele.

Na patacoada que se desenvolve na Venezuela, o governo brasileiro avalizou uma reinterpretação criativa da Constituição, e se alinhou aos que endossam uma farsa que transforma a figura de Chavez em um fantasma onipresente, que governará como presidente eleito de um leito do setor de terapia intensiva de um hospital de Havana, capital de Cuba. Nem mesmo em território nacional o presidente eleito estará hoje, dia 10 de janeiro, quando começa um novo mandato presidencial para o qual foi eleito.

O princípio da “continuidade administrativa” é a base legal da decisão, referendada pela Corte Suprema da Venezuela, que considerou que a posse é uma mera formalidade que pode ser preenchida a qualquer momento daqui para frente. Temos então a seguinte situação na Venezuela: um presidente que não aparece em público nem fala desde dezembro, mas que enviou um pedido para não estar presente à sua própria posse; um vice-presidente que não foi nomeado para o cargo; e um presidente da Câmara que é o único a ter um cargo oficial, mas que não exercerá a presidência devido a um acordo político interno.

Na prática, o que aconteceu foi a prorrogação do mandato de Chavez e de Maduro que se encerraria hoje, mas ninguém teve a coragem de assumir.

O Globo, 10/1/2013