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A gente precisa de amor

 

Sem sua criação, não haveria família, nem disciplina religiosa ou conceito de pátria, nada disso

O amor foi uma invenção dos dramaturgos gregos que acabou se tornando piloti indispensável, fundamento básico na construção da civilização ocidental. Sem sua criação, não haveria família, nem disciplina religiosa ou conceito de pátria, nada disso. Não haveria nem mesmo a mera ideia de amizade ou de simples colaboração entre seres humanos. O amor é mais uma dívida preciosa contraída pela civilização junto aos gregos de muito antigamente, o mais moderno e sempre renovável instrumento de integração social entre pessoas e bandos.

Tinha de tudo. Zeus, deus máximo dos gregos, namorava Métis, com quem teve Athena, deusa de respeito. Mais tarde, casou-se com Hera, sua irmã, em quem gerou uma filharada. Zeus namorava à beça, cometendo incestos, adultérios e sedução de donzelas. E ai de quem se metesse em sua vida sentimental! Já a Odisseia, a mais bela descrição de uma viagem de volta, é inspirada na narração de Ulisses, que resistiu a cantos maviosos de mulheres lendárias, para ir ao encontro de Penélope, seu único amor, que tecia infindável manto à sua espera. E ainda, mesmo sendo herói ou semideus, se você olhar para trás, como fez Orfeu em busca de Eurídice, o objeto de seu amor desaparece da história viva, vira estátua (os gregos ainda tiveram esse cuidado de evitar o passado, para que o amor não se submetesse ao que não interessa mais).

Sabidos, os conterrâneos de pensadores como Aristóteles, Sócrates e Platão ainda inventaram os Jogos Olímpicos, a consagração do esporte, ocasião festiva para a celebração do corpo pelo esforço físico que faz esquecer as amarguras da vida. Sendo a maior delas a do fracasso ou do simples rolo no mundo do amor.

O amor não é uma obrigação olímpica mas guarda, em sua prática, muito da disputa esportiva. Numa Olimpíada, os jogadores estão tão interessados na vitória imediata, quanto em serem gratuitamente aplaudidos pelos que ainda não os conhecem. Ou por aqueles que já os amam, mas precisam atualizar seus sentimentos, torná-los visíveis a olho nu. Os atletas chamariam a isso de fidelidade; mas a fidelidade é um pressuposto de quem torce, não de quem disputa o campeonato.

A gente tem apenas uma pálida ideia do que deve ter sido participar da invenção do amor. Não deve ter sido fácil, o pessoal sofreu muito, por séculos, até normatizarem sua existência. O amor individual, de um ser por outros, era apenas um pretexto para expor o desejo que se tinha de fazer parte, de pertencer a um grupo ou a uma comunidade, de possuir os mesmos elos de ligação, tornando-os mais claros a quem os possuísse. No fundo, o amor era um modo mais simples e direto de explicar, a nós mesmos, esse interesse por alguns e o desinteresse por outros. Não tínhamos como recusar o que seria fatal.

Segundo prestigiado filósofo alemão do século XIX, que mal tratou do amor e dos sentimentos humanos em geral, “os artistas não rompem da terra como os cogumelos, eles são sempre frutos de sua época e extraem do seu povo as seivas mais preciosas e as menos notáveis para exprimi-las nas obras de arte”. Pode ser o contrário também. Os seres humanos, sobretudo suas lideranças artísticas, podem estar fazendo uma viagem circular para que, quando as questões de sua existência e convivência estiverem se organizando melhor, eles possam enfim simplesmente amar.

O Globo, 25/07/2021