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Falta de confiança

 

O vídeo que está sendo distribuído por parlamentares de uma entrevista do ainda deputado Jair Bolsonaro a Mariana Godoi mostra o candidato elogiando o orçamento impositivo, que àquela altura abrangia as emendas individuais dos parlamentares. Antes disso, o orçamento era apenas “autorizativo”, isto é, o Executivo podia cumprir só o que considerasse importante, submetendo o Legislativo aos humores do Palácio do Planalto.

Na entrevista, Bolsonaro elogiou o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, hoje na cadeia, por ter aprovado o orçamento impositivo, e disse que com essa medida, o Executivo deixaria de chantagear o Legislativo. Negou com veemência que ela tornasse o Executivo refém do Congresso.

Interesante é que as duas palavras, “chantagem” e “refém” foram ditas de maneira diversa à que o General Augusto Heleno usou para criticar o Congresso. Para ele, na conversa reservada que foi captada por um vazamento do áudio, o Congresso é quem chantageia o Palácio do Planalto, tornando o presidente da República refém. É a típica situação em que a posição de quem elogiou no passado muda de acordo com o cargo que exerce no presente.

Já com Bolsonaro no poder, o Congresso ampliou o alcance do orçamento impositivo às emendas das bancadas, aumentando a proporção das que têm que ser executadas obrigatoriamente durante o ano legislativo.

No ano passado, o Congresso deu um passo mais largo, incluindo na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que as emendas de comissão e as do seu relator também seriam impositivas. É deste avanço parlamentar nas verbas públicas que estamos tratando.

O sonho do governo, acalentado pelo ministro da Economia Paulo Guedes, seria que, ao contrário, o Congresso autorizasse que as verbas chamadas “carimbadas”, isto é, as que são destinadas à áreas específicas como saúde e educação, entre outras, fossem liberadas, para que o Executivo tivesse mais margem de manobra  para distribuir o dinheiro do Orçamento de acordo com as necessidades daquele momento.

Guedes alega ainda que o próprio Congresso poderia ter maior liberdade de alocar verbas públicas nos setores que considerasse prioritários. Faz todo sentido, e aí entra a complicação de um governo que não tem articulação política, e aproveita todas as situações para criticar os parlamentares, gerados pela velha política, segundo Bolsonaro.

Uma das queixas mais freqüentes é a de que o presidente nunca leva para inauguração de obras deputados da região, a não ser os seus mais íntimos, como o deputado Hélio Lopes, o “Hélio Bolsonaro”, que já foi apresentado ao presidente dos Estados Unidos por Bolsonaro como “o meu Obama!”, referindo-se à cor de pele do amigo. Ainda segundo Bolsonaro, que o considera “um irmão”, Hélio Negão, como também é conhecido, demorou um pouco a nascer e ficou “tostadinho”.

Não há confiança no Congresso em que um acordo com o Planalto será cumprido, a começar por este da LDO. Nenhum Congresso do mundo aprova um orçamento sem acordo dos partidos, especialmente os do governo. Se a ampliação das emendas impositivas foi aprovada, ou a liderança do governo foi inepta ou relapsa, ou aprovou a mudança. Talvez tenha sido essa a principal razão para a saída do deputado Onix Lorenzoni da coordenação política.

Um líder partidário, ainda mais do governo, tem condições de obstruir a votação na Comissão de Finanças para impedir que alguma coisa seja aprovada sem o assentimento do Palácio do Planalto. Quando o governo deu-se conta do que acontecera, o ministro Luis Eduardo Ramos, que é quem cuida agora da relação com os congressistas, armou um acordo para que metade da verba de R$ 30 bilhões que passaria a ser também impositiva fosse repassada pelo Congresso aos ministérios, numa negociação para a aplicação em programas que correspondessem ao interesse tanto do governo quanto dos parlamentares.

A fala do ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), sugerindo que o presidente convocasse manifestações para acabar com a “chantagem” do Congresso, e a posterior divulgação de vídeo com esse fim pelo próprio presidente Bolsonaro, levou ao impasse atual, reforçando a falta de confiança na sua relação com os parlamentares.

O Globo, 01/03/2020