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A esperança e a vida real

 

Talvez por que tenhamos saído de um ano muito adverso, que ofereceu tão poucos motivos de satisfação, este começo de 2021 parece mais promissor. Dois acontecimentos nos deram essa esperança. O primeiro foi a conduta da Anvisa ao julgar o uso emergencial das vacinas CoronaVac, do instituto chinês Sinovac, em parceria com o Butantan, e Oxford/AstraZeneca, com a Fiocruz.

Quando se soube que diretores da agência reguladora que aprovariam o uso ou não das vacinas tinham sido nomeados pelo presidente da República, muitos acharam que o resultado seria o óbvio: eles não teriam coragem de aprovar a CoronaVac. Imagina se iriam contra a vontade do negacionista Bolsonaro, que sempre desprezou publicamente a “vacina chinesa de João Doria”? Como desobedecer quem prometera que o país não seria “cobaia”?

Pois bem, demonstrando uma coragem cívica rara nestes tempos, eles aprovaram por unanimidade a aplicação emergencial da Coronavac e da Oxford/AstraZeneca, justificando seus votos com critérios científicos. Defenderam ainda a vacinação em massa e o distanciamento social, afirmando que não há tratamento terapêutico para a doença, contrariando Bolsonaro e o ministro Pazuello, que “receitam” a tristemente famosa hidroxicloroquina.

O outro motivo de esperança foi o início do plano de imunização em todo o país. Mesmo considerando a absoluta falta de planejamento, a total insuficiência das doses e as inaceitáveis deficiências da distribuição, o evento levou para as primeiras páginas dos jornais e telas de TV o sorriso feliz dos que acabavam de ser imunizados.

“Merecíamos um domingo assim”, escreveu a sábia e lúcida Margareth Dalcolmo diante das manifestações de euforia. Mas ela mesma não deixa esquecer que, ante a tragédia de Manaus, trata-se do “o avesso do épico”. Na terra que é o pulmão do mundo, idosos, bebês, pacientes estão morrendo asfixiados.

E ninguém sabia? De acordo com a Advocacia-Geral da União, o Ministério da Saúde teve conhecimento da escassez no estoque de oxigênio no estado no dia 8 de janeiro. O ministro Pazuello esteve em Manaus na época e alegou que fez “tudo o que tinha que fazer”. E atribuiu o agravamento da crise à umidade do ar.

No mais, ele diz que a culpa é da imprensa.

O Globo, 20/01/2021