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À espera da razão ética

 

Há dias, Chico Caruso lembrava em charge a exigência de Cazuza nos anos 80: “Brasil, mostra tua cara”. O compositor, que comparava o país a uma droga que já vinha malhada, criou assim uma espécie de trilha sonora da década conhecida como a da “razão cínica”. A expressão fora inventada pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk e divulgada aqui pelo psicanalista Jurandir Freire Costa, que a descrevia como um comportamento que mistura mentira e hipocrisia ao cinismo, tendo a capacidade de contaminar a sociedade. 

“É a sensação de que nada mais tem valor”, explicava, “de que o valor não existe, que tudo é igual. Ou seja, passa a imperar uma filosofia, que eu chamo de razão cínica, que, no nível político, do dia a dia, diz que, seja eu um mau-caráter, seja eu um homem de bem, é exatamente igual. Ou pior: do ponto de vista do usufruto individual, há até mais vantagens em ser um cafajeste”. 

Em 2012, Jorge Bastos Moreno registrava que o fenômeno nunca tivera tanta aplicação quanto naquele momento, por ocasião da CPI do bicheiro Carlinhos Cachoeira. O colunista ficara chocado com o envolvimento no escândalo do senador Demóstenes Torres, promotor de Justiça, secretário de Segurança de Goiás e paladino da ética pública. Mesmo quando a polícia revelou que tinha gravado mais de 300 telefonemas comprometedores para o mafioso, ele manteve a cara de pau, desafiando: “Podem grampear à vontade, não vão encontrar nada”.

A escassez de ética na política é, portanto, recorrente. Com a Lava-Jato, no entanto, a questão talvez tenha atingido seu grau máximo de afronta. Graças à tecnologia, nunca na história se comprovou um acúmulo tão grande de delinquência. Os exemplos são muitos, mas há um especial, o do deputado afastado Rodrigo Rocha Loures, intermediário do presidente Temer para assuntos do grupo J&F com o governo. Ele foi filmado carregando a mala com R$ 500 mil recebida das mãos do executivo Ricardo Saud. O dinheiro fora enviado por Joesley, que, conforme um acerto, lhe pagaria essa propina semanal por 20 anos.

Sem poder desmentir o flagrante, Loures alegou que desconhecia o conteúdo daquilo que carregara; em seguida, sumiu com a mala; depois, devolveu-a à polícia, que, ao contar o dinheiro, constatou a falta de R$ 35 mil. Era um escândalo dentro do escândalo. Por isso, seus advogados preferiram depositar na Caixa a grana que evaporara. Como se vê, o Brasil está respondendo a Cazuza, mostrando a cara, a própria e a dos caras de pau. Mas estes precisam também pagar — com prisão e devolução do que foi roubado, acrescido de juros e multa exemplar. Senão, vamos continuar no país da razão cínica sempre à espera da razão ética.

O Globo, 27/05/2017