15 de março de 1985 foi uma sexta-feira. Hoje, essa sexta-feira cai em 11 de março. Naquele ano, nesta data, ninguém ainda sabia nem poderia prever o que iria acontecer nos dias seguintes, talvez os mais tensos e mais dramáticos da história do Brasil.
A quase certeza é que no dia 11 Tancredo já estivesse sentindo dores e já se havia desencadeado o processo que o levaria à morte. Os relatos médicos, a que só ultimamente tive acesso, são contraditórios quanto à presença dos primeiros sintomas. O doutor Warren Zapol, intensivista do Massachusetts General Hospital, que acompanhou Tancredo Neves nos últimos dias, diz ter sido o dia 10 aquele em que ele começou a sentir as primeiras dores. Já o doutor Francisco Pinheiro da Rocha diz ter sido chamado no dia 13 de março. Nesse dia, às 11h30, examinou o presidente detalhadamente e ele apresentava "abdome agudo cirúrgico". Reagia à apalpação e tinha perfeitamente definida uma "massa intra-abdominal que sugeria tratar-se de um plastrão (formação em forma de gravata larga) organizado naquele local".
A partir daí começa seu suplício, seu calvário. No dia 15, à 1h10, a nove horas da posse em que deveria receber todas as homenagens do povo brasileiro, prestando o seu juramento constitucional na Câmara dos Deputados, seu abdome começava a ser aberto no Hospital de Base de Brasília.
Viveria o Brasil, a partir daquele instante, um momento de tensão em que a história não sabe para onde caminha. Poderia ocorrer tudo. Os militares fiéis ao presidente Figueiredo falavam em voltar aos seus ministérios e mobilizar o dispositivo castrense. Os políticos, envoltos em perplexidades, não tinham nenhum grupo organizado para tomar decisões. Reuniam-se na Câmara, em casa de deputados, nos gabinetes dos presidentes do Senado e da Câmara, nos restaurantes, no hospital. Os jantares organizados para serem a antecipação da festa se transformavam em desorientação e tristeza.
Em meio a tudo isso, dois homens aparecem e mostram grande capacidade de gerir crises: Ulysses e Leônidas. Ulysses, quando eu lhe disse que não desejava assumir sem Tancredo, me replica não ser hora de sentimentalismos -"temos deveres com a nação"- e diz que "um processo tão longo de luta pelas instituições não pode morrer nas nossas indecisões". O general Leônidas imediatamente partiu para a ação concreta: "Vamos ao Leitão, não para discutir sobre posse, mas, sim, para dizer que às dez horas o Sarney, vice-presidente da República, ocupará a Presidência. No mais, tudo será mantido como estava programado".
Quando me comunicaram a decisão, às 3h, eu era um homem batido pelo imprevisto. Ulysses foi o meu grande bastão nessa hora. Suas qualidades de homem público e de estadista e sua coragem asseguravam a ordem civil. Leônidas dava o respaldo militar.
Depois foram os longos dias de sofrimento de Tancredo. Eu, sem ter escolhido ninguém do governo, sem pertencer a um Estado grande e sem ter respaldo dos grupos econômicos nacionais e da inteligência brasileira, iria ser o 30º presidente do Brasil.
O que me esperava? Como seriam os dias, as noites e os anos futuros?
Tudo isso dissipou-se no florescimento de uma transição tranqüila, na criação de uma poderosa sociedade democrática.
Relembro Tancredo Neves. Fui apenas um instrumento de sua inspiração. E tudo deu certo, até mesmo os grandes erros.
15 de março de 1985. Naquela manhã encoberta de Brasília, as espatódeas vermelhas enfeitavam os gramados verdes.
Folha de São Paulo (São Paulo) 11/03/2005