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Ele não quis o celular

 

Todos o conhecem pelo apelido, Dono. Quando se pergunta sobre o nome, ele diz que um dia alguém assim o chamou e assim continuou pela vida toda. Deve ter 50 anos. Quando você estende a mão, ele abre um sorriso, feliz por te ver. É cordial, parece que tudo está sempre bem. A menos que uma de suas plantinhas, como ele as chama, da horta da Sueli e do Ivo não esteja se desenvolvendo como ele pretende. Ou como devia. Fica ali um tempão a olhar para ela, tentando descobrir a razão. Pouca água? Ou muita? Agrotóxicos não existem em seu vocabulário. Realmente não foi uma muda bem tirada? Muda boa tem de ser conseguida com jeito e carinho. Dono sabe o temperamento de cada verdura, flor, fruta.

Ele vive para elas. Delas. Todos o conhecem na região de Cangalha, Minas Gerais, ainda que saia pouco ali da Toca do Alto. A não ser no final de semana, quando sela o cavalo e segue para a casa da mãe no distrito vizinho, voltando no final do domingo. O cão Dylan, branco, imenso, o segue até a porteira. Dylan (sim, em homenagem ao compositor e cantor prêmio Nobel) e Dono são inseparáveis.

Dono trata dos abacateiros, das cerejeiras, das amoras, tangerinas, limões variados, abóboras, alfaces, couves, almeirão, alho-poró, cenouras, mandiocas, abobrinhas, berinjelas, tudo o que uma boa terra dá. Em se plantando. Cada uma é cuidada de um jeito, colhida com cuidado, no momento certo.

Dono vive só. Relaciona-se com os empregados da fazenda e não se sabe com quem mais além da família, nos finais de semana. Dia desses ele pediu a Sueli se podia ver algo especial na tevê. Queria muito, muito mesmo. Surpresa e curiosa, ela disse que sim. Era a missa da Basílica de Aparecida no dia 12 de outubro. Dono assistiu comovido e, ao que me pareceu, com mais fé e emoção do que muito peregrino ou beata. Aquilo o tocou profundamente. Valeu o dia. Como nada conhecemos do brasileiro do interior, esse que está fora do círculo urbano que pensa ser o Brasil. Esses, que são os invisíveis.

Hoje, todos no campo, mas todos mesmo, têm seu celular, e a maioria dispensou o cavalo, substituindo-o pela motinha, como dizem. Dia desses imaginando que Dono talvez sentisse falta de um, para se comunicar melhor, tirá-lo daquela solidão, Sueli e Ivo o chamaram. 'O que acha de te darmos um celular?' 'Celular?' 'Para se comunicar com os outros, mandar mensagens à mãe, ficar ligado.'

Dono ficou em silêncio. Demorou, achou a resposta. 'Acho que não, obrigado! Vejo as pessoas grudadas nele o tempo inteiro. Tenho medo que vai me tirar a atenção das plantinhas...'

O Estado de S. Paulo, 31/10/2021