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Dois autores em Azevedo

 

A obra de Aluísio Azevedo ganha, finalmente, edição à altura de sua importância com a publicação, pela Nova Aguilar, da ficção completa do autor, em dois alentados volumes, contendo doze romances e um livro de contos, num total de 2488 páginas.


Em Azevedo convivem (ou se digladiam) dois escritores: o folhetinista fantasioso de “Uma lágrima de mulher” e de “A mortalha de Alzira”, entre outros exemplos de subliteratura para o paladar sôfrego de leitores pouco exigentes, e o narrador vigoroso e atento às tensões e transformações estruturais da sociedade brasileira, conforme demonstra a obra-prima “O cortiço”, de 1890. Mais do que qualquer de seus antecessores, Azevedo, com este romance, foi exímio construtor de vastos painéis humanos e urbanos, em que os personagens, carentes embora da densidade psicológica perceptível na obra do contemporâneo Machado de Assis, movimentam-se com vivacidade e revelam, de modo explícito, os escusos jogos em que se enredam na busca do poder e da consolidação de um patrimônio amealhado à custa da espoliação feroz das classes menos favorecidas.


Possível pai do naturalismo brasileiro, com “O mulato”


Credita-se a seu romance “O mulato”, de 1881, o surgimento do naturalismo no Brasil. Alguns historiadores reclamam a primazia para Inglês de Sousa, cujo “Coronel Sangrado” data de 1877, havendo ainda quem já localize a dissolução do modelo da prosa romântica em “Inocência” (1872), de Taunay, e em “O Cabeleira” (1876), de Franklin Távora. De qualquer modo, foi Azevedo o mais persistente cultor e propagador da nova tendência, chegando mesmo a elaborar o projeto de um ciclo romanesco intitulado “Brasileiros antigos e modernos”, a que não deu seqüência, mas que, se levado a cabo, retrataria as transformações do país no período coberto entre o Império e o advento da República.


Esta nova edição, que substitui, com bastante ganho, a anterior, publicada em 14 volumes, na década de 1950, pela Martins, se abre com um excelente estudo da organizadora, Orna Messer Levin, seguido por um não menos precioso ensaio de Antonio Arnoni Prado, que lastreia o essencial da fortuna crítica sobre Aluísio Azevedo, com destaque para as contribuições de Álvaro Lins e de Antonio Candido.


Orna Levin reconstitui os traços mais salientes da biografia do escritor e percorre, livro a livro, sua produção, assinalando os avanços e recuos estratégicos que lhe marcaram a trajetória, até o algo melancólico silêncio subseqüente a seu ingresso na carreira diplomática. Tece ainda pertinentes comentários sobre as repercussões, na narrativa azevediana, de outras manifestações artísticas por ele cultivadas, como a pintura e o teatro, e sublinha a relevância de Azevedo para a consolidação de uma consciência profissional do escritor brasileiro, contraposta ao beletrismo da maioria dos literatos românticos.


De fato, o romance de Aluísio Azevedo carreia, com freqüência, uma dimensão pragmática, trazendo à tona problemas de variado espectro, sem esquivar-se de propor ou insinuar corretivos às crises, para além da função evasionista ou anódina da arte como simples entretenimento burguês. Corretivos, diga-se, tanto no nível mais amplo dos conflitos sociais, quanto no microuniverso das patologias e desajustes psíquicos particulares, estes, em geral, traduzidos sobretudo nos sintomas de histeria que acometiam várias de suas personagens.


Um ideal de profilaxia - projetado igualmente no corpo humano e no corpo social - subjaz nessa literatura combativa, em que a explosão da libido, não raro, é considerada desviante das “boas” forças do organismo, seja em seu aspecto coletivo, seja em âmbito individual. O clamor da carne, nocivo e malévolo para a Madá de “O homem” (1888), se reconfigura, temperado, na receita em fogo brando de Olímpia, a olímpica narradora de “O livro de uma sogra” (1895): para fazer perdurar o casamento da filha, ela prescreve a parcimônia de encontros esparsos e controlados entre os cônjuges, numa ardilosa proposta de administração do desejo.


O aparato crítico da publicação comporta ainda uma antologia de estudos sobre Azevedo, e é de se lamentar que, por motivos alheios à vontade da organizadora, a seleta não ultrapasse o ano de 1957, excluindo, portanto, alguns textos básicos, como os de Candido e de Affonso Romano de Sant’Anna. Por outro lado, o leitor de hoje tem oportunidade de acompanhar a recepção da obra de Azevedo no calor da hora de sua produção, por meio de um arco temporal estendido desde o pioneiro artigo de Urbano Duarte acerca de “O mulato”, publicado em julho de 1881, até a visão de conjunto fornecida por Oliveira Lima em 1912, no ano anterior à morte do romancista. A bibliografia do autor apresenta-se bem elaborada, registrando, inclusive, as colaborações dispersas em periódicos. Mas seria desejável, no que toca às traduções, fazer referência à edição francesa de “O cortiço” (traduzido por Botafogo), que, além de inventar títulos para todos capítulos da obra, se tornou famosa por censurar um episódio da narrativa, substituindo-o por decorosas reticências...


Documento da formação do romance brasileiro


A reunião da prosa ficcional de Azevedo não é algo que, hoje, pareça atrair grande público. Para muitos leitores, ele continuará sendo, essencialmente, o autor de “O mulato”, “Casa de pensão”, “O cortiço” e, em menor escala, de “O homem” e do “Livro de uma sogra”. Aí reside o núcleo mais consistente de sua obra. O conjunto de sua produção, porém, representa documento expressivo para os estudiosos da formação do romance brasileiro, e, sob esse ângulo, a nova edição da Biblioteca Luso-Brasileira deve ser saudada como uma contribuição valiosa em prol de nossa tão combalida memória literária.




Ficção completa (em dois volumes), de Aluísio Azevedo. Organização de Orna Messer Levin. Nova Aguilar, 2488 páginas. R$ 280




O Globo (Rio de Janeiro) 7/1/2006