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A diversidade da ABL

 

As últimas três semanas culturais foram dominadas pelas eleições para a Academia Brasileira de Letras, exemplares da diversidade cultural da sociedade brasileira, que a ABL sempre procurou espelhar. Desde sua fundação, que no próximo ano fará 125 anos, a ABL definiu-se como uma agremiação dos “notáveis”, não apenas de literatos, assim como a Academia Francesa.

Essa definição nasceu de um debate em que dois dos fundadores defendiam ideias distintas. Machado de Assis queria apenas literatos, enquanto Joaquim Nabuco defendia a tese vencedora de que deveria também abrigar os grande vultos brasileiros, em diversas modalidades.

No frontispício de sua sede, o Pétit Trianon, e no logotipo oficial está inscrito “Academia Brasileira”. Ela nasceu em 1897 como “Academia Brazileira de Letras”, mas em 1910, no primeiro volume da “Revista da Academia Brazileira”, o complemento “de Letras” aparecia em corpo menor.

Uma famosa polêmica foi a entrada de Santos Dumont na Academia, e coube a Coelho Neto responder à pergunta que se faz até hoje: que obras ele escreveu? Coelho Neto respondeu: “Escreveu nas estrelas. Cada avião que se levanta é como página escrita por ele para a glória de nossa pátria”.

Precisa perguntar quais livros Fernanda Montenegro ou Paulo Niemeyer Filho escreveram? Até escreveram, e bons livros, mas estão na Academia por serem brasileiros notáveis, Fernanda Montenegro, um ícone da cultura nacional, uma brasileira pensadora do Brasil. As mulheres demoraram a serem aceitas na ABL, a romancista Raquel de Queiroz foi a primeira, em 1977. Outra grande romancista, Nélida Pinõn, foi a primeira presidente, no ano de centenário da ABL.

Fernanda representa ao mesmo tempo o empoderamento feminino, o teatro brasileiro, que já teve Sabato Magaldi entre  os membros da ABL, e a cultura tão vilipendiada nos tempos atuais. Paulo Niemeyer, além de um dos neurocirurgiões mais importantes do país, reconhecido internacionalmente, é um humanista, assim como foi seu colega Ivo Pintanguy, outro grande médico a integrar a ABL.

O Instituto do Cérebro (IEC), que Paulo Niemeyer dirige, transformou-se em centro de excelência da especialidade dedicado somente a atender doentes do Sistema Único de Saúde (SUS). Durante os tempos iniciais da pandemia, o IEC dedicou-se integralmente a tratar os acometidos pela COVID-19. Num momento em que a ciência está tão negligenciada pelo governo de turno, mas tornou-se uma âncora de esperança para os cidadãos, a ABL continua sua tradição de acolher grandes nomes da Medicina como Carlos Chagas Filho, Oswaldo Cruz, Clementino Fraga, Miguel Couto.

Concorrendo com Niemeyer, o indígena Daniel Munduruku teve uma votação expressiva que o qualifica para tentar novamente a vaga, o que ele já confirmou. Não é novidade na ABL, como lembra o acadêmico Cicero Sandroni na bela biografia de Austregésilo de Atahayde que escreveu com sua mulher, Laura, filha do presidente que formatou por tantos anos a estrutura e os caminhos da Academia Brasileira de Letras moderna.

Austregésilo, grande jornalista, era descendente direto de índigena, e por isso seu amigo Assis Chateaubriand, também acadêmico, o chamava de “caboclo”, enquanto Darcy Ribeiro, o antropólogo que fez do Brasil, e principalmente dos indígenas, sua base de estudos, se dirigia na ABL a Austregésilo como “cacique”.

O que dizer de Gilberto Gil, que mescla em sua representatividade a negritude, a musicalidade brasileira, a poesia em letras de música e a visão de quem já foi Ministro da Cultura?  Disputou com outro negro, o poeta Salgado Maranhão. O historiador Alberto da Costa e Silva, Prêmio Camões de Literatura, cita alguns negros do alto mundo da cultura brasileira membros da Academia Brasileira de Letras, como Evaristo de Moraes Filho, Octavio Mangabeira e José do Patrocínio, entre outros. Dom Silvério Gomes Pimenta, negro, foi primeiro religioso a tornar-se acadêmico.

A ABL recebeu em seu acervo, da Faculdade Zumbi dos Palmares, a foto de Machado de Assis negro, que seria “o Machado real”. O presidente Marco Lucchesi ressaltou o “gesto simbólico” de que estava revestido aquele acontecimento, lembrando a distribuição de livros pela ABL nos quilombos, nos presídios, e do trabalho que faz junto aos movimentos negros.

O Globo, 21/11/2021