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Dirigismo cultural

 

A intromissão do governo na vida pessoal dos cidadãos é a ambição de todo governo autoritário, de esquerda ou de direita. Quando há uma ditadura, como na China, é fácil até mesmo controlar o dia a dia do cidadão, como o governo pretende fazer a partir do próximo ano pondo em prática o Sistema de Crédito Social, que dará nota aos cidadãos de acordo com seu comportamento cotidiano, que será monitorado pelo governo.

Esse programa definirá o grau de confiança do governo no cidadão. Conforme a pontuação, cidadãos serão proibidos de viajar, ou de colocar filhos em boas escolas, ou de trabalhar. Pode transformar alguém em pária, ou em burocrata bem sucedido.

 Aqui, como ainda somos uma democracia, o governo está inaugurando um sistema de monitoramento tupiniquim, com burocratas checando nas redes sociais o pensamento e o comportamento político de artistas e produtores que pretendam financiamento para suas obras dos órgãos públicos.

Na Caixa Econômica já começou. Para o presidente Bolsonaro, trata-se de não  “perder a guerra da informação”. O que ele chama de “mudanças na questão da cultura, da Funarte, da Ancine”, é simplesmente censura oficializada, pois determinou que “não veremos mais certo tipo de obra por aí”.

Para Bolsonaro “não é censura, isso é preservar os valores cristãos, é tratar com respeito a nossa juventude, reconhecer a família como uma unidade familiar, essa é a nossa linha”. O presidente já definiu claramente o que pensa: se quiserem fazer filmes pornográficos, façam com dinheiro próprio, não com dinheiro público.

Simples assim. O critério do que é pornográfico é dele, como se o dinheiro público fosse também dele. Essa não é a função do governo no financiamento público da cultura. Ao contrário, um governo democrático tem obrigação de estimular e financiar a diversidade cultural.

O conceito intervencionista e dirigista que está por trás do suposto projeto cultural do governo Bolsonaro, que já faz seus efeitos na auto-censura dos dirigentes de órgãos que temem punições, pode ser espelhado na tentativa dos governos petistas de controlar a produção cultural.

O presidente Bolsonaro vê a área de cultura aparelhada pela esquerda, e quer fazer o seu próprio aparelhamento ideológico, pela extrema direita.

A tentativa de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) no governo Lula, com o objetivo de garantir uma “contrapartida social” à produção cultural, tem o mesmo sentido da criação do Conselho Federal de Jornalismo, para "regulamentar, disciplinar e fiscalizar o exercício profissional" e "zelar pela qualidade da informação e pelo exercício ético do jornalismo".

Essa, aliás, é uma ojeriza comum aos governos autoritários de direita e de esquerda: detestam a imprensa independente. O presidente Bolsonaro refere-se às empresas de comunicação brasileiras como “abjetas”, “mentirosas”, e procura constranger jornalistas escolhidos como adversários pessoais, assim como faz Trump nos Estados Unidos, e como fazia Lula em seus tempos de liberdade.

Nos tempos petistas, até mesmo associações que teoricamente deveriam representar os jornalistas associaram-se ao governo para “enfrentar e combater a manipulação da informação, a distorção de fatos e as práticas jornalísticas que privilegiam interesses escusos em detrimento do cumprimento da função social do jornalismo".

Com as mesmas palavras, o governo de hoje, que se contrapõe ao de ontem, e vice-versa, tenta controlar a imprensa e as manifestações culturais. Enquanto o PT quis incluir a tal da "contrapartida social" nos incentivos culturais, o governo Bolsonaro tenta incluir seus pensamentos e crenças, seus valores morais, como régua para os demais cidadãos, alegando que está “preservando os valores da família cristã”.

Quem define quais são os “valores da família cristã”? O que seja manipulação da informação? Qual é a "função social" do jornalismo? Denunciar os desvios do governo, qualquer governo, seria uma delas? E quais são as "contrapartidas sociais" para financiamentos de obras audiovisuais?  

De esquerda ou de direita?

O Globo, 09/10/2019