Não proponho abolir as convicções, as diferenças e a controvérsia, mas sim o ódio que as envolve e que é hoje um dos sentimentos mais bem distribuídos do país.
A primeira vez que ouvi falar de Voltaire, o filósofo iluminista francês do século XVIII, foi no antigo curso “científico”. Um professor repetia tanto uma frase dele que ainda sei de cor, mesmo sem ter boa memória: “Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-lo” — assim mesmo, numa tradução meio pedante, usando o pronome pessoal majestático “vós”, de complicada conjugação. Com os nervos do país à flor da pele, é uma boa hora para lembrá-lo. Recentemente, o psicanalista Contardo Calligaris escreveu uma crônica intitulada “De que lado você está?”, falando da dificuldade de conversar. “Não tente dizer que você não está de lado algum. Ou melhor, tente, e isso será a prova esperada de que você é ‘contra a gente’.”
É assim para um especialista na arte de escutar a alma alheia e até para um colunista que é criticado justamente por se esforçar em manter equidistância. Outro dia, um leitor me cobrou: “Quando é que você vai sair de cima do muro?”. Respondi que, em tempos de conflagração, com as pessoas se xingando para mostrar que têm razão, o melhor lugar para observar os dois lados ainda é ali em cima. Ele não se conformou, e exigiu que eu me posicionasse “contra ou a favor”, como se não tomar partido fosse vacilo e não recusa. Parti então para a brincadeira e aleguei que a Terra foi feita redonda justamente para não ter apenas dois lados. Não adiantou muito, e eu devo ter perdido um escasso leitor.
Não proponho, evidentemente, abolir as convicções, as diferenças e a controvérsia, mas sim o ódio que as envolve e que é hoje um dos sentimentos mais bem distribuídos do país. Surge onde menos se espera: no meio de um papo entre colegas, parentes e amigos. O curioso é que todos juram estar praticando e defendendo a democracia, quando a principal característica desse sistema é a coexistência dos contrários, ou seja, a convivência com quem pensa não igual a nós, mas de maneira oposta.
A política (partidária), como já disse um cacique mineiro, é como nuvem: “Você olha, e ela está de um jeito. Olha de novo, e ela já mudou”. A luta que se trava pelo poder é menos por motivação ideológica e mais fisiológica. Como aconteceu em outras ocasiões — basta citar a eleição de Collor e o seu impeachment —, muitas amizades são desfeitas, enquanto os principais desafetos de ontem são hoje puro afetos. Quando outras nuvens, essas de tempestade, nos ameaçam, não custa recordar tudo isso para quem está entrando no jogo com a intolerância dos torcedores apaixonados.