A história, além de mestra, passou a ser, hoje, uma vitrine onde se pode acompanhá-la em tempo real. A primeira sensação que tive de ver a história, estar dentro do redemoinho do acontecer, foi com minhas visitas à União Soviética em 1988 e à Rússia em 2000. O território era o mesmo, as pessoas também, os anos bem próximos, mas tudo mudara e estava mudando. Dez anos antes a moeda era o rublo com a efígie de Lênin, em 2000 era a águia bicéfala, símbolo dos Romanov, malditos e assassinados, agora redivivos. A bandeira da foice e do martelo cedera lugar à bandeira tricolor do império e Nicolau 2º, canonizado pela igreja ortodoxa, é, agora, venerado nos altares. Lênin encontrei em um sósia, tirando fotografias com turistas por US$ 5.
Vejo, agora, com a mesma sensação, mais diluída, os julgamentos sobre a revolução de 64. Cada um conta um pedaço, com a marca dos sentimentos pessoais de quem viveu os fatos. Pensei que o passado era história e fiquei certo de que ainda não é história, mas subsídios para a história com pouco do passado e muito do presente. A declaração do presidente Lula me pareceu perfeita: "Cabe agora aos historiadores fixar a justa memória dos acontecimentos e personagens daquele período".
De definitivo, somente o exemplo dos frágeis tempos institucionais que passamos, esses sim coisas do passado. Mas há um componente de natureza diferente que se incorporou à democracia nos tempos modernos, componente perigoso. Nasceu um outro contrapoder, fruto da modernidade da informação e das tecnologias em tempo real, que é a busca de substituir a representação, com legitimidade posta nos mandatos, por uma legitimidade feita pelas pesquisas e pela ação política desestabilizadora. Os marxistas proclamavam três formas de contrapoder: "a resistência, a insurreição e a constituinte". Agora surgiu outra, a desestabilização. Com ela, balança-se o poder e a legitimidade passa a ser moeda corrente no embate entre governo e oposição.
Getúlio não resistiu a ela, pois mostrou-se despreparado para lidar com as formas do poder democrático depois da eleição de 50. Teve, acuado pela desestabilização, de dar um tiro no peito. Juscelino, marcado para ser deposto, teve a grande capacidade política de sobreviver e, depois, declarava: "De tudo o que fiz, a maior obra foi evitar o truncamento da democracia". Jânio também sucumbiu pela renúncia, por sua incapacidade de lidar com as pressões desestabilizadoras. Não vamos falar dos militares, alguns deles alcançados também pela doença, outra forma de sucumbir.
Eu, marcado para perder para a desestabilização, resisti. Fiz a Constituinte, vivi e soube enfrentar o jogo democrático. Entreguei o país com uma sociedade democrática, livre, instituições consolidadas. Fiz a transição e sobrevivi.
Collor, outra renúncia. Fernando Henrique também soube conviver com as tentativas de ilegitimidade e desestabilização. Isso passou a ser uma forma de luta política.
Lula não pode fugir à regra e à crise dos contrapoderes. Com uma diferença: não vem do embate político, mas de um dos braços do aparato do Estado, reincidente.
Mais uma vez recordo a sabedoria nordestina: "O pau tá torando onde devia ter ladainha".
Folha de São Paulo (São Paulo - SP) e
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em 02/04/2004