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A Declaração Universal aos 70 anos

 

Retomo o tema da importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu septuagenário para reiterar que ela tem a característica de um evento inaugural. Assemelha-se à passagem do dever dos súditos para o direito dos cidadãos que assinala a Declaração de Direitos de 1789, da Revolução Francesa, na lição de Bobbio.

A Declaração não é uma soma aperfeiçoada de declarações nacionais. Parte do princípio da igualdade – e seu corolário lógico, a não discriminação (artigos 1.º e 2.º) – contempla de maneira articulada os direitos civis e políticos e os econômicos e sociais e culturais, mas inova ao formular, como pontua René Cassin, um dos seus redatores, direitos fora do alcance das jurisdições nacionais. É por isso que a Declaração aponta o caminho para o que Hannah Arendt denominou o direito a ter direitos, para atribuir “a todos os membros da família humana” os benefícios do princípio da legalidade, que é uma qualidade do exercício do poder que circunscreve o arbítrio dos governantes.

Destaco o direito de toda a pessoa ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei (artigo 6.º), que se contrapõe ao aniquilamento jurídico da pessoa humana, característica da dominação totalitária. Anoto, por exemplo, o artigo 13, que trata da liberdade de locomoção de todas as pessoas dentro e fora das fronteiras do seu Estado, e o 14, que afirma o direito da pessoa vítima de perseguição de procurar e gozar asilo em outro país. Esses dois artigos inovadoramente postulam a livre circulação das pessoas e o 14 traduz a aspiração a um kantiano direito à hospitalidade universal.

A Declaração é um desdobramento da Carta da ONU, que considera entre os seus propósitos “promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Introduz, dessa maneira, a “ideia a realizar” não apenas da paz, da segurança, da solução pacífica de conflitos, da cooperação entre Estados igualmente soberanos, mas de indivíduos livres e iguais, inserindo assim uma abrangente agenda normativa na pauta internacional.

A Declaração traduz a “ideia a realizar” de “um ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações”. É um marco histórico, afirmador da plataforma emancipatória representada pela promoção dos direitos humanos como critério organizador e harmonizador da vida coletiva não só no plano dos Estados, mas em escala planetária.

Ela tem como antecedente conceitual a conjectura kantiana de um direito cosmopolita, cujo objeto não seriam apenas as relações interestatais, mas os seres humanos.

A sensibilidade generalizada em relação à violação dos direitos humanos aflorou com as atrocidades do século 20, com os campos de concentração, o genocídio, a descartabilidade em larga escala dos seres humanos e os sofrimentos dos flagelos da guerra.

Essas são as fontes materiais que inseriram os direitos humanos nos propósitos da ONU. A Declaração é uma resposta ao problema do mal ativo da prepotência sem limites dos governantes e do mal passivo de suas incontáveis vítimas que sofreram uma pena sem culpa, para valer-me da formulação de Bobbio. Esse mal se agravou com a dissociação entre os direitos dos povos e os direitos humanos que redundou num inédito número de expulsos da trindade Estado-povo-território, os refugiados, os deslocados no mundo, que não tiveram como recorrer aos direitos humanos por não terem acesso aos benefícios da legalidade, como expôs Arendt em As Origens do Totalitarismo.

A internacionalização abrangente dos direitos humanos tem início com a Declaração, que está redigida na perspectiva dos seres humanos que precisam da tutela do direito a ter direitos. Tem como pressuposto que a igualdade em dignidade e direitos, base dos direitos humanos, não é um dado, mas um construído de convivência coletiva baseada na pluralidade dos seres humanos que compartilham a Terra com os outros seres humanos.

A Declaração aponta para um novo nomos da Terra, que transita pela garantia de mútuos acordos da comitas gentium. Tem a sua razão de ser quando se deseja que a nova vizinhança internacional trazida pelo processo de unificação do mundo seja algo mais promissor do que o aumento do ódio mútuo e da irritabilidade de todos contra todos, na lição de Arendt.

A relevância desse nomos é destacada no artigo 28, que postula o direito de todas as pessoas a uma ordem internacional em que os direitos e liberdades nela estabelecidos possam ser plenamente realizados. A nossa Constituição está em sintonia com ele ao estabelecer, entre os princípios que regem as relações internacionais, a prevalência dos direitos humanos.

O reconhecimento e a positivação dos direitos humanos, tanto no plano interno quanto no internacional, são uma expressão da integração histórica de valores de convivência humana. Valores, como destaca Miguel Reale, são um bem cultural. Têm um suporte na realidade, que é a sua capacidade de efetivar-se na prática. Referem-se assim à realidade, mas a ela não se reduzem pois apontam igualmente para uma direção de dever ser – sempre podem ser aprofundados. Ser e dever ser coexistem numa dialética de mútua implicação e polaridade. Nessa interação, os direitos humanos, como um adquirido axiológico, podem se adensar ou se fragilizar. No momento atual do mundo eles estão fragilizados.

A afirmação dos direitos humanos não é nem uma marcha triunfal nem uma causa perdida, como lembra Danièle Lochack. É um combate na lida com os contextos e as circunstâncias. Continua prioritariamente na ordem do dia para quem vive a crença no valor da dignidade humana e tem na Declaração uma fonte de inspiração permeada pelo alcance da sua plataforma emancipatória.

O Estadão, 16/12/2018