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Dando um tempo na crise

 

Não que São Lourenço seja alienada e não tome conhecimento do que está ocorrendo na política. Só que, em vez de ficar voltada para Brasília, prioriza o mais próximo.

Se você não aguenta mais ouvir falar em crise; se está confuso sem saber o que vai acontecer com o país; se não suporta mais o clima de Fla x Flu político; se teme essa marcha de intolerância, um filme cujo final você já viu e não gostou, não se estresse e faça como eu, que me refugiei em São Lourenço, onde, além de receber a honrosa “Comenda ambiental” e participar de um seminário sobre jornalismo, passei o fim de semana gozando os ares e a água dessa cidade famosa por ser uma estância de cura — não só física, mas também mental. Não que ela seja alienada e não tome conhecimento do que está ocorrendo na política. Só que, em vez de ficar voltada para Brasília, prioriza o que está mais próximo de seus interesses. Numa ensolarada manhã, enquanto tomo o café com minha mulher, abro um jornal local, e a manchete é “Semana Santa atrai centenas de fieis” (e mesmo antes os hotéis já estavam cheios de turistas). Outro destaque é o “retrocesso na legislação ambiental”, uma preocupação de quem zela pela ecologia. Já uma das manifestações de rua não chamou muita atenção, apesar da “forte adesão”, pois contou com a participação de “aproximadamente mil pessoas”. Em compensação, o projeto Crer-Ser ganhou mais espaço, porque celebrava “12 anos de muita arte, cultura e socialização”.

Depois, fomos dar um passeio de Maria Fumaça, que valeu como uma viagem à minha infância em Ponte Nova. Naquela altura, meu pai era ferroviário da Leopoldina Railway, e eu fui criado ouvindo o apito rouco do trem, que agora eu confundia com a memória dos sons do passado e com os do “Trenzinho do caipira”, de Villa-Lobos e Ferreira Gullar: “Lá vai o trem com o menino/ Lá vai a vida a rodar”. No vagão em que íamos para Soledade, dois violeiros e um sanfoneiro entoavam “Beijinho doce” e “Cabecinha no ombro”, entre outras pérolas do cancioneiro sertanejo.

Não sei como é viver numa cidade como São Lourenço. Nasci e fui criado no interior, e meu sonho era vir para o Rio. Nenhum lourenciano com quem conversei, porém, manifestou desejo de se mudar. Mas mesmo que você já seja um dependente do cheiro de gasolina, da insegurança, das mazelas das grandes metrópoles, recomendo uma pausa, fazer uma viagenzinha, desapegar enfim, para usar um modismo. A crise não vai se resolver, o impeachment ainda estará em discussão, os “torcedores” de um lado e do outro vão continuar se xingando, mas você vai voltar mais desintoxicado e tolerante para suportar o que ainda vem por aí.

PS: Gostaria de corrigir uma declaração deste colunista no jornal de domingo (“Encontro na Casa do Saber”, página 38). A frase correta é: “Minha implicância com o pessimismo é que o pessimista acaba torcendo para dar errado, ele ter razão e dizer: eu não disse?”. Em vez de “pessimismo”, saiu publicado “otimismo”.

O Globo, 23/03/2016