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Crise institucional

 

O confronto entre os poderes Judiciário e Legislativo prossegue sem que exista uma força política capaz de fazer a mediação. A recusa da presidente do STF ministra Carmem Lucia de participar de reunião entre os presidentes dos Poderes, sugerida por Calheiros e encampada pelo presidente Michel Temer, mostra a bem a distância que os separa, depois que discordaram publicamente tendo como pano de fundo a ação da Polícia Federal no Senado, contra membros da Polícia Legislativa.

Carmem Lucia saiu em defesa do Juiz Vallisney de Souza Oliveira, que autorizou a operação da Polícia Federal, depois que o presidente do Senado chamou-o de “juizeco de primeira instância”. A presidente do STF aproveitou uma reunião do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para se solidarizar com o juiz: "Onde juiz for destratado, eu também sou", declarou a ministra, exigindo respeito dos demais Poderes da República.

Carmem Lucia lembrou ainda que não há razão para que as discordâncias não sejam exercidas dentro das regras democráticas e de civilidade. O senador Renan Calheiros, fazendo uma reclamação contra a ação da Polícia Federal no Senado, exaltou-se a ponto de dizer que nem mesmo na ditadura militar ato tão grave de desrespeito à soberania do Legislativo fora realizado, esquecendo-se de que na ditadura o Congresso foi fechado, vários parlamentares tiveram seus direitos políticos cassados e foram perseguidos.

Ontem, depois da recusa de Carmem Lucia, o presidente do Senado voltou a fazer críticas, desta vez à própria Carmem Lucia que, segundo ele, deveria ter repreendido o Juiz de primeira instância que teria usurpado a prerrogativa do Supremo ao autorizar a ação no Senado.

A questão chegará ao plenário do STF, e há ministros lá que consideram que Renan Calheiros tem razão na reclamação, embora não necessariamente nos termos em que se posicionou. O desprezo de Calheiros pela primeira instância da Justiça brasileira é uma distorção de nossa cultura, pois até recentemente a possibilidade de recorrer indefinidamente até que qualquer questão chegasse à última instância, o Supremo Tribunal Federal (STF) ou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) fazia com que a condenação em primeira instância perdesse o valor para os condenados.

Havia o hábito de desqualificar a condenação em primeira instância, na certeza de que nos diversos recursos a condenação seria reformada ou prescreveria antes do trânsito em julgado. Hoje, com a decisão do STF de que a condenação em segunda instância já pode levar o réu a cumprir a pena, mesmo que continue recorrendo, mudou esse desprezo pela primeira instância, sobretudo porque o Juiz Sérgio Moro em Curitiba está demonstrando que a Justiça pode ser rápida e eficaz.

Mas para os que têm o foro privilegiado, como deputados e senadores, o desprezo continua, pois só o STF os julga, e num ritmo bem mais vagaroso do que as instâncias anteriores. A crise institucional que pode resultar desse desencontro será conseqüência de uma leniência continuada em relação ao Poder Legislativo que está sendo quebrada pela Operação Lava Jato, provocando reações dos políticos, que não estão acostumados a serem alvo de investigações policiais.

O Supremo terá que intervir para restabelecer os limites de cada Poder, mas o fará em um clima de grande tensão em que o corporativismo também entra, em ambos os lados em disputa, além das questões puramente jurídicas.          
 

O Globo, 26/10/2016