Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Corpo do Futuro

Corpo do Futuro

 

Volto a folhear a Constituição de 88 e me deparo com um sentimento de saudade e furor. Primeiro, pelo que fomos, quando a utopia era o centro da agenda e não cedera lugar à platitude da gestão e da governança, idolatradas pela antipolítica. A busca da modernidade tardia passava pelo fim da desigualdade, através de um conjunto definido de políticas sociais que ainda brilham na Constituição e nas leis complementares.

A saudade alia-se também à década dos vinte anos de quem escreve, mobilizado, então, pelas Diretas Já e pelo corpo do futuro indefinido, com o déficit de liberdade a que era preciso dar resposta. Já o furor, articulado e cívico, surge da afronta ao núcleo duro da Carta Magna, ferida por emendas complacentes e oportunistas, votadas a toque de caixa, pois o debate, para muitos, dissolve-se numa prática indigesta. Sob um olhar mais filosófico, no entanto, as emendas recentes violam cláusulas pétreas, e sem nenhum pudor, para atender a interesses que não contemplam a República, dentro de um plano de metas não pactuado com a sociedade. 

Muita coisa mudou nesses quase trinta anos. Mas o que preocupa é a saúde precária das instituições, cujos sintomas são o desvio de função, a hipertrofia e a prevaricação, quando não atuam outras comorbidades. Assim, a política foi relegada a mera rotina empresarial, como os que pensam que é possível colocar um país de joelhos para combater a corrupção ou para vendê-lo no atacado, sem discussão. E os partidos perderam o timing para realizar uma autocrítica forte e inadiável. 

No vácuo de poder, surgem os arlequins da antipolítica, os “puros” e “inocentes”,  que não toleram sistemas e partidos, messias da extrema direita, os populistas de todas as cores, pós-caçadores de marajás e neo-janistas.

Dos inúmeros golpes desfechados contra o espírito de 1988, destaco as vicissitudes sofridas pela UERJ. A Universidade pública é uma das maiores conquistas alcançadas em nosso país. Como se atrevem os governantes a essa lamentável tentativa de homicídio?  Invoque-se o artigo 5º, parágrafo 3º da Constituição: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, que vem sendo infligido a toda a comunidade onde a UERJ atua. A despeito de tudo, a instituição segue muito viva, com a alta qualidade de serviços prestados ao país, cuja resiliência é causa de orgulho, forte e combativa, como jamais se viu.  Penso em Paulo Freire e Darcy Ribeiro e me pergunto em que mundo acordamos, pois a espessura da utopia se confunde com os destinos da educação.        

O argumento econômico é previsível, mas insuficiente – não existem óculos para a miopia dos tecnocratas. Eis a razão pela qual precisamos recuperar a esfera da alta política, em seus deveres e prerrogativas.   

Será uma construção lenta, movida também por grandes furores cívicos e uma saudade obstinada pela utopia que precisamos reconstruir, em recusa ou adesão, como sujeitos do processo.

O Globo, 05/04/2017