Sou daqueles que não acreditam nessa história de o governo ter determinado o banimento total das emendas orçamentárias das oposições, inclusive a da Fundação Irmã Dulce, considerada pefelista. Isso seria provocar a ira do céu e da terra, isto é, uma grandiloqüente burrice. E quem está no poder jamais é burro. Afinal, o Orçamento federal é um instrumento de ordenação do governo, a peça principal de tudo, o chamado cofre, aquele que dom João 6º pedia que embarcassem em primeiro lugar quando fugiu de Lisboa para o Brasil.
Por falar em burro, li, numa resenha científica, dessas de descobertas de coisas inúteis, que o burro foi domesticado duas vezes, com intervalo de 100 mil anos. Depois da primeira, fugiu para ficar selvagem e livre, mostrando que, no princípio, não era tão burro.
Eu tive um colega de vestibular para faculdade no tempo em que havia exame oral. Na prova de francês, foi dado um texto para ser traduzido que trazia a palavra "bourrer" (encher). Ele traduziu como "burro". O mestre Antônio Lopes perguntou-lhe: "Onde está o burro?". Meu colega respondeu: "Aqui", apontando para a palavra "bourrer". Professor Lopes reagiu: "O burro não está aí, está na cadeira que você senta". E assim popularizou-se o conceito de "burrice" que está disseminado na sociedade. Não é verdade que o animal, o burro, não tenha contribuído para isso. Veja-se como eles aceitavam puxar os bondes, puxando gente, com a promessa de um capim que não chegava nem no fim da tarde, na hora do descanso.
O Brasil também muito deve aos burros, algumas vezes mais do que aos sabidos. Falamos com grande orgulho dos bandeirantes que abriram as fronteiras do país, que foram os descobridores e pioneiros. Pois os bandeirantes não existiriam se não fossem os burros. Era sobre suas costas que eles entravam pelo sertão preando índios. E o burro era tão burro que não sabia que nas suas cangalhas vinham as barras de ouro que se iriam transformar em pedras do convento de Mafra pela vaidade de dom João 5º. Outra coisa curiosa é que as grandes fortunas da colônia eram feitas por donos de escravos e de tropas de burro. Sem outro tipo de transporte para carga, eles eram os grandes empresários. Ser dono dos burros era a marca de um grande empreendedor, detentor de um dos maiores negócios, uma Microsoft de hoje. Um deles, o pai de dona Veridiana, um dos grandes troncos paulistas dos Prados, começou assim e foi barão do Império.
O homem veio buscar nos bichos exemplos para marcar os outros homens e, às vezes, ofendê-los -e aos bichos também. Fulano é camaleão, é cachorro, égua, cobra, raposa e outros mais bem populares. Eu, por exemplo, quando era novo, gostava de dizer que tinha uma memória de elefante. Aureliano, quando se falava das raposas da política -área em que a raposa é mais atingida-, dizia que o fim delas era "ser pele no pescoço das mulheres". Mas o mais violento é égua. Li, num canto de página policial, que um sujeito esfaqueou o outro porque foi chamado de égua. O padre Vieira, ao defender-se no Tribunal da Inquisição, chamou os juízes de "eqüíssimos doutores" e tomou vacina: "Falo de eqüidade, e não de égua".
Bem, tudo isso para dizer que, tirar verba da Fundação Irmã Dulce seria uma burrice e pecado. Coisa de burro. E Cristo fez todos os milagres do mundo: fez cego ver, morto ressuscitar, aleijado andar. Mas não há passagem de um burro tornar-se inteligente. Ainda bem.
Folha de São Paulo (São Paulo - SP) 09/07/2004