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Como ser feliz

 

Nos próximos anos, um novo Brasil nascerá dessas ideias que, afinal de contas, não são nem tão novas assim

Não preciso dizer que nunca vi na minha vida fotos tão belas sobre a Amazônia. Acho que todo mundo está cansado de ouvir isso das fotografias de Sebastião Salgado sobre a região. Eu já as tinha revisto em exposição, no Museu do Amanhã, uma mostra em cartaz com a participação de sua companheira, Lélia Wanick Salgado, mais uma vez preciosa e fundamental a nos iluminar com o que é especial naquilo tudo (só ela é capaz de destacar com precisão o que está exposto).

Mas, naquele sábado passado, tratava-se de ver as fotos de Sebastião de outra forma, com música de Villa-Lobos e Philip Glass. Além da participação de Lélia.

É difícil reproduzir o sentimento que a gente sente no coração a partir desse espetáculo. É claro que é um espetáculo, a mostra de alguma coisa arranjada por “autores” que reproduzem com ela o que sentem diante do que contemplam e que também não é deles. Entre outras coisas, a origem das pessoas acaba sempre por determinar ou ajudar a determinar o que elas pensam do que veem. Do que são e serão; ou do que pretendem ser.

Mas como se trata de pessoas que têm a ver com a gente, batalhando em um ringue no qual poderíamos estar ou, quem sabe, é quase certo que em breve também estaremos, as cordas que nos amarram a essas experiências estão esticadas ao limite do resistível. Esse limite nos faz sofrer, o coração em trevas, a sentir dores inesperadas, desejar o que não temos e sabemos que não vamos ter. Nunca. Gozar com nosso fracasso na sociedade e na vida, sentir o prazer dessa e de qualquer outra dor que nos ocorra.

A exposição de fotos de Sebastião Salgado no Museu do Amanhã já é um presente excepcional que a população do Rio de Janeiro ganha para conhecer um pouco mais um pedaço tão ignorado do país. Mas o que nós assistimos no sábado foi mais do que isso. As fotos digitais, refotografadas por Sebastião em película, não são apenas a revelação de um vizinho, uns primos que mal conhecemos. Elas são os sentimentos do artista, diante não mais apenas do que ele vê na região; mas do que a região lhe revela através das fotos, sem que ele precise nos dizer o que deseja com isso.

Digamos que é como Leonardo deve ter se sentido ao perceber que sua tela tinha reproduzido com fidelidade, drama e ênfase a última refeição de Cristo com seus apóstolos. Só que agora era o próprio Sebastião, o autor do milagre da reprodução, quem nos dizia o que estava sentindo. E com o apoio de uma trilha sonora que só pode ter sido composta e executada pensando apenas nisso. As lágrimas caem de nossos olhos nos primeiros acordes ao piano da “Floresta do Amazonas,” de Villa-Lobos. Quando a soprano canta os primeiros versos do poema à floresta (“Acorda, vem ver a lua...”), já não estamos mais no Theatro Municipal do Rio, mas em algum espaço de onde vemos o Brasil inteiro e o que queremos de onde por acaso nascemos.

Como se tudo tivesse sido combinado, uma voz masculina começa a cantar o Hino Nacional e logo todos seguem a voz grave de modo que é como se o teatro cantasse em uníssono, mais de emoção que de talento criativo, cantando que deitado eternamente em berço esplêndido etc. Há muito tempo que eu não saía de uma experiência de criação artística com tanta emoção e esperança.

Apesar de tudo, temos que acreditar que o pesadelo político que vivemos hoje esteja quase terminando, falta pouco tempo para recuperarmos nosso desejo de sermos felizes, junto a pessoas igualmente felizes e orgulhosas do que são. Falta pouco para podermos começar a reconstrução do Brasil, com horror à morte e mais amor ao amor. Nos próximos anos, um novo Brasil nascerá dessas ideias que, afinal de contas, não são nem tão novas assim.

O Globo, 31/07/2022