Há 17 anos, houve uma situação parecida como esta, vivida por alguns dos personagens de hoje, mas em posições diferentes.
Até outro dia era “discurso”. Agora, a palavra da moda na política é “narrativa”. Por exemplo, a narrativa do governo contra o impeachment consiste em dizer que na verdade se trata de um golpe contra a democracia, perpetrado pela oposição para obter no tapetão o que não conseguiu nas urnas. Nas últimas semanas, em todos os seus comícios palacianos, a presidente usou e abusou da palavra golpe. Os militantes, claro, foram atrás. Num vídeo, cerca de dez artistas também repetiram o discurso, ou melhor, a narrativa. Houve até quem, usando de licença, digamos, poética, chegou a comparar o momento atual ao golpe de 64. Dilma foi mais longe: comparou a métodos do nazismo. Menos, gente, menos.
Mas eu queria falar de outra coisa — do Brasil em que a História se repete com sinais trocados. Há 17 anos, houve uma situação parecida como esta, vivida por alguns dos personagens de hoje, mas em posições diferentes. Michel Temer ocupava o lugar de Eduardo Cunha na presidência da Câmara, Fernando Henrique o de Dilma, e Lula andava às voltas com seu partido, que chegou a apresentar quatro pedidos de impeachment do presidente. Aécio Neves era deputado e criticava o que agora defende. Assistir pela internet à sessão da Câmara que rejeitou o processo contra FH é divertido. É como se um defeito de sincronia tivesse trocado as falas e posto na boca de um petista o que seria de um tucano e vice-versa. Um deputado do PT aparece acusando o presidente de “estelionato eleitoral” e de “crime de responsabilidade”, duas expressões usadas agora contra Dilma. Um terceiro, lembrando Clinton, afirmou que o tucano não se limitara a “bolinar a democracia; a tinha estuprado”. José Dirceu foi enfático ao declarar que o “crime, por ser público e notório”, dispensava provas. Um orador, pelo menos, foi premonitório ao elogiar um regime que “permite que se carregue hoje a faixa ‘Fora FH’ e amanhã, quem sabe, ‘Fora Lula’.”
O pedido foi arquivado por 100 votos “sim” e 342 “não”. Já então os dois lados falavam em “defesa da democracia” (aliás, é difícil conhecer alguém que, da boca pra fora, não defenda a democracia). Aos que estão se digladiando enquanto se acusam de intolerantes (intolerante, como se sabe, é o outro), sugiro que vejam um desses debates de época. Ensinam que em política, se você não depende dela profissionalmente, é melhor adotar o relativismo em vez da intransigência. Senão, há o risco de ficar igual ao personagem desse diálogo que ouvi recentemente.
— Não dá mais pra falar de política com aquele nosso amigo, está intratável.
— Mas ele era uma pessoa tão serena, tão tolerante.
— E continua sendo, desde que você concorde com ele.