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Ciclo paranóico

 

A pandemia que expõe aos olhos do país a inépcia, a falta de empatia e a corrupção nas entranhas do governo do presidente Bolsonaro, especialmente devido à CPI da Covid, foi a mesma que o poupou de manifestações populares mais vigorosas, devido ao receio de sair às ruas em manifestações políticas imprescindíveis  ao desencadeamento de um processo de impeachment.

O Centrão somente permitirá que um impeachment comece a ser debatido na Câmara se a popularidade de Bolsonaro cair a um ponto irreversível, como aconteceu com Dilma. A disputa regional em Alagoas entre o presidente da Câmara, Artur Lira e o relator da CPI, senador Renan Calheiros, impede que isso aconteça. A abertura do processo de impeachment será uma derrota pessoal de Lira.

A aceleração da vacinação proporcionará uma retomada econômica, reduzindo a pressão sobre o presidente, mas facilitará a mobilização de grandes massas populares e aumentará o consumo de energia, o que poderá provocar um apagão em pleno ano eleitoral.

Não são nada promissoras as perspectivas para o governo brasileiro no último ano do mandato presidencial, e as pesquisas de opinião já indicam esse declínio de popularidade. Dificilmente os que hoje consideram Bolsonaro, segundo o Datafolha, autoritário, despreparado, desonesto, indeciso, incompetente, falso e pouco inteligente mudarão de ideia, e não apenas por falta de tempo para o presidente provar-se o contrário. Por falta mesmo de capacidade de ser outro que não esse, que a percepção popular identificou tardiamente.

Sempre foi tudo isso, mas conseguiu enganar muitos, que se deixaram levar por promessas vãs, arremedos de honestidade, um liberalismo econômico que não combinava com sua postura anterior. Ser o antipetista exemplar bastou para que centenas de milhares de eleitores, que hoje rejeitam sua maneira grosseira de falar e de se comportar, e o retrocesso civilizacional que impõe ao país, o escolhessem.

Bolsonaro conseguiu arrastar o eleitorado do PSDB no sul, sudeste, centro oeste, tradicionais nichos tucanos que, a partir dali, se fortaleciam para enfrentar o PT, pelo menos no primeiro turno. Enfraquecido desde o mensalão - nunca é demais lembrar que no primeiro turno de 2006 o tucano Geraldo Alckmin teve 41% dos votos -, o PT conseguiu manter-se no poder com um misto de populismo, fisiologismo e muito dinheiro desviado dos cofres públicos para bancar as campanhas eleitorais.

A partir de 2013, com as grandes manifestações de massa contra o governo Dilma, esse eleitorado de centro e centro-direita foi à busca de quem derrotasse o PT nas eleições presidenciais. O tucano Aécio Neves quase venceu a eleição de 2014, e Bolsonaro, que não passa de um Cabo Daciolo com um parafuso a mais,  tornou-se a saída diante de um Alckmin amorfo em 2018 e um Ciro Gomes traído por Lula em favor de Haddad.

Quando Ciro tentou ser a alternativa aos extremos, já não havia mais tempo. Sua imagem de destemperado está sendo repaginada pelo marqueteiro João Santana, para que possa tentar assumir o papel de terceira via que não colou em 2018, porque ele ficou a meio caminho. O ambiente político naquela ocasião pedia sangue nos olhos dos candidatos, o que Bolsonaro tem de sobra.

Hoje, o ex-presidente Lula surge nas pesquisas como a alternativa natural, mas elas mostram também que o caminho para uma terceira via nunca esteve tão aberto, com a possibilidade de Bolsonaro, que desmancha a olhos vistos, nem mesmo chegar ao segundo turno. Essa massa eleitoral que abandonou Bolsonaro, no momento passou-se na maioria para o PT, num movimento que nada tem de perene.

O mais provável é que a campanha presidencial apresente aos eleitores outras opções, enquanto Lula e Bolsonaro se digladiarão, retroalimentando a disputa de ódio que hoje já está em andamento. Difícil imaginar que quem fugiu do PT como o diabo da cruz em 2018 volte a ele apenas para derrotar Bolsonaro. Só se for a única alternativa. Como foi Bolsonaro em relação ao PT. É preciso quebrar esse ciclo paranóico.

O Globo, 11/07/2021